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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

A literatura me levou pra viajar ( mas não foi pra Disney).

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Já percebi que um dos "modos de usar" a literatura é para viajar nas minhas viagens, duas coisas que amo fazer. Todas as vezes que escolho um destino, costumo ler, ver filmes, ouvir músicas , ou seja , enquanto planejo minhas saídas devoro tudo o que posso a respeito daquele lugar. E com a Espanha não foi diferente. Assim que decidi conhecer a Andaluzia _ a Espanha moura _ e a Catalunha, não parei mais de viver esses locais e o melhor de tudo é que a viagem não acaba. Estive na Espanha em setembro de 2019 e esse foi o meu roteiro:

Sevilha - Córdoba- Ronda- Málaga- Granada- Valência- Maiorca- Barcelona- Figueres.



Minha viagem começou três meses antes: pesquisei o roteiro, me inscrevi num curso online de Cubismo espanhol do museu Reina Sofia, assisti à série da Netflix A catedral do mar, cujo livro do mesmo nome eu já havia lido ( vou falar dele em Barcelona) assisti às três temporadas de Isabel, a Rainha de Castela, série histórica que narra a subida de Isabel de Castela ao trono , seu casamento com Fernando de Aragão, a Reconquista de Granada e as viagens de Colombo. Pronto! Já estava quase íntima da Espanha que eu iria visitar!.


1ª cidade : Sevilha .

Bairro Santa Cruz : A Judería

"Sevilha tem bairros e ruas onde andar-se solto, à ventura, onde passear é navegação, é andar-se , e sem destinação,/.../ onde andar é o mesmo que andar-se e vão soltas alma e carne" João Cabral de Melo Neto

Vista do Centro Histórico com o rio Guadalquivir ao fundo. Foto tirada de cima da torre La Giralda.(set.2019)


Híspalis romana e Isbilya moura, Sevilha, capital da Andaluzia, é um encanto e merece uma visita cuidadosa, porque são as muitas camadas de civilizações e de culturas. Ficamos cinco noites ali. No primeiro dia o ideal é sempre um tour a pé pela cidade. Escolhemos a Sevilha free tour, em frente à Plaza Nueva, dali os grupos partem sempre às 10 h e você dá de gorjeta quanto quer ou pode. A gente curte fazer o city tour no primeiro dia, pra poder saber aonde voltar nos dias seguintes. Nosso grupo era formado por maioria sul-americana, poucos espanhóis e muitas perguntas! E que cidade pra fotografar! Nessa caminhada, fomos do Centro Histórico à Praça de Espanha, passando pela fábrica de tabacos, hoje Universidade de Sevilha e terminando a caminhada pelo parque Maria Luísa.


Nos slides acima (clique para passar), vemos a Plaza del Triunfo, de onde partimos, a Plaza de la Virgen de los Reyes, o portão do Alcázar _ conjunto palaciano que conta mil anos de história_ e parte da fachada da bela Catedral de Sevilha, com a famosa torre da Giralda, à direita. Abaixo, o portal da fábrica de tabacos, com o detalhe do índio esculpido na fachada . Esse edifício de 1728 é cheio de curiosidades, foi a 1a fábrica de tabacos da Europa com o fumo trazido das Américas tornando-se, no século XVIII, a indústria mais importante da Espanha e também é conhecido por ser o local de trabalho de Carmen, a cigarreira, personagem da ópera de Bizet. Hoje ali funciona a reitoria da universidade de Sevilha. João Cabral descreve de modo bem-humorado o edifício no poema A fábrica de tabacos .


"Para a fábrica de tabacos, Fernando VI edificou o que mais parece um convento/.../ Lá trabalham as cigarreiras, quase nuas pelo calor, discutindo, freiras despidas, teologias de um certo amor"

E aqui uma panorâmica da praça de Espanha, que foi construída para a exposição Ibero-americana de 1929 e que reúne, no século XX, elementos da cultura sevilhana moura e renascentista. Essa praça impactante foi cenário de Star Wars, Ataque dos clones ( 2002)

À tarde partimos pra conhecer o bairro de Santa Cruz, uma das mais antigas juderías medievais da Península Ibérica. Não se pode imaginar Sevilha sem conhecer Santa Cruz.

O bairro fica localizado atrás do Real Alcázar de Sevilha, colado às suas muralhas. Nesse primeiro post sobre Sevilha, vou começar justamente pela judería, o bairro cheio de histórias da cidade!

O Bairro Santa Cruz - A Judería


As juderías eram bairros judeus segregados , que surgiram com o crescimento das cidades muçulmanas andaluzas e se estruturaram com critérios étnico-religiosos ao longo da Idade Média. Inicialmente havia tolerância entre as religiões. À medida que a religião cristã se sobrepunha aos territórios árabes recém-conquistados, os judeus foram sendo empurrados para guetos, sendo proibidos de conviver com cristãos, de entrar e sair da juderia à noite, de morar fora do bairro. Afonso X, o Sábio, em 1266, ao conquistar Múrcia afirma :

" que nenhum judeu/.../more entre cristãos, mas que tenham sua juderia separada da porta de Orihuela ( cidade espanhola) , naquele lugar em que os partidores lhes deram a nosso mando"

Nessas primeiras fotografias, podemos ver a antiga muralha que separava o bairro judeu do Alcázar, o palácio mouro.

As ruas estreitas, sombreadas, com casas que deixam os pátios sevilhanos à vista, parecem labirintos e mantêm alguns nomes bem significativos, como Callejón del Água, por onde escoava a água do Alcázar para abastecer as casas da juderia, a calle Pimienta, calle Barrabás e a calle Vida, uma pequena e escondida rua que era a saída do bairro, local por onde muitos judeus conseguiram escapar do massacre judaico de 1391, já sob domínio dos espanhóis católicos. Todas cheias de lendas e histórias.


Houve uma calle Muerte, mas essa teve seu nome trocado por exigência de seus moradores. Há uma lenda ligada a essas duas calles, Vida e Muerte.


A lenda conta que ali vivia uma linda moça, Susona, bela judia, filha do rico e influente comerciante Diego Ben Susón, que ambicionava poder político, mas jamais o alcançaria por sua religião. Ele, então, resolve organizar uma revolta. Susona, noiva de um cristão, ouve a conversa de seu pai e conta tudo para seu namorado , que denuncia a revolta e, no dia seguinte, todos os traidores são presos e condenados à morte. A jovem, que foi repudiada por sua comunidade e por seu noivo, vai para um convento e pede em testamento que, ao morrer, sua cabeça seja separada de seu corpo e pendurada na porta de sua casa para que ninguém esqueça de que jamais se deve trair um pai. Pois bem... a lenda fala de amor, né?


Agora um pouco de história...

Mas o que houve em 1391 foi o massacre de 4.000 judeus.


A judería viveu uma certa liberdade durante três séculos (XI - XII), sempre pagando altos tributos, mas de certa forma protegida pelos reis, lembremos de Afonso X e sua corte. No entanto, a partir do século XIV, com a morte de Pedro I de Castela por seu meio-irmão Henrique de Trastâmara, a situação dos judeus começa a mudar. A judería passa a ser, então, um bairro cercado, com toque de recolher e tendo suas 4 portas fechadas todas as noites. Como em todo regime autoritário e intolerante, os judeus passam a ser definidos como o inimigo, causa de todos os males e quem deveria ser eliminado. Essas acusações são estimuladas por padres fanáticos, pela política de reconquista em alta na Espanha e também pelas péssimas condições econômicas vividas naquele período, tais como as guerras fratricidas, a fome e a peste, que não atingia os judeus na mesma intensidade com que atingia a cidade, talvez pelo próprio caráter de confinamento do bairro. Essas foram as condições para a ocorrência do ataque sofrido. Contam que, no dia da invasão, os cristãos entraram na judería e puseram um guarda em cada porta, para evitar que os judeus fugissem. Aqueles que fugiram pela Calle Muerte saíram numa praça onde o massacre ocorreu. Os que fugiram pela Calle Vida conseguiram escapar, daí os nomes das ruas. Os moradores , muitos séculos depois, decidiram trocar o nome da rua para Calle Susona, bem menos inconveniente.

Após a expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, o bairro passa a chamar-se Santa Cruz por causa de uma antiga igreja de mesmo nome que foi construída sobre uma sinagoga, hoje a igreja não mais existe, somente a praça permanece. Havia quatro sinagogas na judería, uma delas, "a maior e mais formosa sinagoga da Espanha" , construída em estilo mudéjar, hoje é a Igreja de Santa Maria La Blanca, construída também em 1391. É uma igreja muito visitada, com um interior famoso por sua beleza, misturando o gótico mudéjar ao barroco espanhol do século XVII, quando foi totalmente reformada. Diz-se que é o único templo de Sevilha em que se pode reconhecer, por meio de variados vestígios, os três usos do edifício: primeiro uma mesquita, depois da reconquista de Sevilha torna-se uma sinagoga e, por último, uma igreja. Sua fachada é bem simples em contraste com seu rico interior, que não pude conhecer, pois havia um casamento acontecendo, mas há muitos registros dessa igreja na web.

A judería foi uma das maiores da Península Ibérica, durante séculos foi lugar de convívio equilibrado entre praticantes das três religiões, mas no século XII foi esvaziada pela conversão forçada e posterior expulsão dos judeus em 1492 ( séc. XV ). Muitos edifícios foram queimados, principalmente os religiosos, alguns judeus convertidos permaneceram no bairro e pessoas mais pobres passaram a habitar o lugar. Quem ficou manteve suas tradições, suas festas , seus cantos, suas comidas, seus costumes. E é daí justamente que surge o caldeirão cultural que hoje é o diferencial do bairro, com seu artesanato, suas casas de flamenco, suas dançarinas sevilhanas, seus pátios de azulejos e naranjos e a autêntica gastronomia que mistura sabores e odores de tempos imemoriais. É uma festa! Não foi à toa que encantou escritores e artistas, que fizeram do local o cenário para os encontros românticos entre Carmem e D. José. Pelas ruas do bairro podemos ver esse orgulho marcado no chão e nas paredes, como nos slides abaixo.

Cerâmica pregada na parede de um muro e uma marcação no piso do bairro, orgulhoso de ter sido cenário de óperas como Carmen, O barbeiro de Sevilha e O burlador de Sevilha, que apresenta pela 1a vez a personagem D. Juan.

Essa é uma das saídas do bairro Santa Cruz. A gente se encontra com a Giralda emoldurada pelo portal.

O bairro de Santa Cruz entra em decadência logo após seu esvaziamento e permanece por longos anos carregando ainda o estigma de lugar marginalizado, mas hoje é um local muito visitado, porque o isolamento contribuiu para que os moradores mantivessem suas tradições culturais. Muitos judeus voltam ali para conhecer suas histórias, ainda preservadas no emocionante Museu Judaico de Sevilha. E por falar em manifestação cultural e emoção, vivi algo inesquecível ao sair por essa porta ao lado, que é a saída do bairro pelo Pátio das Bandeiras. No momento de um incrível pôr do sol, me senti inundada por uma voz que ocupava todo o espaço da praça. Procuro de onde vem aquele canto e vejo um solitário cantante a "palo seco". Indefinível! Mas João Cabral tentou, nesse poema:

Se diz a palo seco o cante sem guitarra; o cante sem; o cante; o cante sem mais nada; se diz a palo seco a esse cante despido: ao cante que se canta sob o silêncio a pino.

* palo é o nome que se dá às subclassificações do cante flamenco.

O pátio, por si só, já é cinematográfico, imaginem com alguém cantando ao entardecer, sem qualquer acompanhamento musical...

A última imagem é a do nosso artista anônimo. Seu canto está gravado aqui na memória. Mas Cabral vai ajudar a chamar por ela cada vez que eu reler esse poema.

O cante a palo seco é um cante desarmado: só a lâmina da voz sem a arma do braço; que o cante a palo seco sem tempero ou ajuda tem de abrir o silêncio com sua chama nua.

LINKS E BIBLIOGRAFIA

João Cabral de Melo Neto

Livro: Obra completa. Nova Aguilar, 1994. 1ª edição incluiu Andando Sevilha.

Livro: Poemas sevilhanos. , 1992. Nova Fronteira

Livro : A literatura como turismo/ João Cabral de Melo Neto, seleção e textos de Inês Cabral, 2016. Alfaguara.





Ópera: Carmen, de Bizet, 1875.Link com o resumo da ópera: https://www.youtube.com/watch?v=eZferiwioBU

Filme : A rainha da Espanha, 2016. https://www.netflix.com/br/title/80145532







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