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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Idade Média (3) À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré!

Por fim , para fechar o ciclo de estudos medievais, sugiro a leitura do dramaturgo e poeta português Gil Vicente, pela qualidade da sua obra e pela oportunidade de poder olhar pelo retrovisor todo o período medieval com alguma distância.

O final do século XV e início do XVI mostra que a Península Ibérica, agora já Portugal e Espanha, sofreu grandes transformações. Em 1492, com a Inquisição já instaurada em território espanhol, ocorre a reconquista de Granada e posterior expulsão dos mouros e judeus da Espanha pelo Decreto de Alhambra, que obrigava a expulsão dos infiéis ou a conversão forçada. No fim desse mesmo ano, Colombo realiza sua a primeira viagem ao continente americano e o projeto espanhol de expansão ultramarina, nos anos seguintes, passará a ser financiado pelo confisco dos bens dos judeus expulsos, que se vêem obrigados a trocar o território espanhol pelo português.


Em 1496, para pode se casar com a filha dos reis espanhóis, D. Manuel, rei de Portugal, aceita a pressão dos sogros e decide forçar a conversão dos milhares de judeus, que por quatro anos entraram aos milhares por suas fronteiras. A crise econômica por baixa produtividade agrícola e a peste negra, que dizimou a população um século antes reduzindo em 1/3 a população da Europa, foram combustíveis para as acusações antissemitas que atribuíam aos judeus a responsabilidade pela peste. Estes eram frequentemente acusados, desde associação demoníaca a envenenamento de poços artesianos por cristãos de todas as partes do continente e essas acusações foram acirradas pela implantação da Inquisição. A intolerância crescia exponencialmente. A desconfiança com os judeus somada à grande imigração foi responsável pelo pior massacre ocorrido no território português, conhecido como o Massacre de Lisboa, de 1502, quando cristãos portugueses mataram mais de 4.000 judeus.


Essas transformações modificaram fortemente as relações sociais, políticas e culturais naqueles países. As crises do final do século XV ao lado das inovações científicas e tecnológicas ligadas às navegações, a ascensão da burguesia mercantilista, a popularização de autores da antiguidade, antes restritos às bibliotecas reais e/ou religiosas demonstram bem o caldeirão cultural do período. Estamos em plena transição entre o que se convencionou chamar de Idade Média e o que se chamará de Renascimento.


Gil Vicente, considerado o pai do teatro português, é o homem desse tempo, pois tem os pés em cada um desses dois mundos. Em sua obra há uma busca pela restauração do que não existe mais, determinando uma atitude comprometida principalmente com os dogmas católicos perdidos e uma atitude irônica e questionadora dos papéis sociais, próprias do pensamento renascentista. Nesse link, há um estudo interessante de Gil Vicente, seu contexto histórico e suas obras mais importantes : https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1900473/mod_resource/content/1/Gil%20Vicente.pdf

Em O auto da barca do Inferno (escrita em 1517 e encenada em 1531) essas questões ficam bem evidentes. O estudo da obra nos permite observar que sociedade era aquela, quais seus males e acertos, que ideologia estava ali subjacente e que sentimentos o artista experimentava. Esse auto, também conhecido como Auto da Moralidade, é uma fantasia alegórica repleta de ironia, humor e de personagens caricaturais que aponta o dedo para desvios e hipocrisias da sociedade portuguesa no início do século XVI. Rindo dela, tentava corrigir-lhe os costumes.



Essa peça faz parte de uma trilogia na forma de auto, típico texto moralizante medieval, composta de 1 ato, textos curtos, rimados e metrificados em redondilha, e escritos em galaico-português. O enredo gira em torno do Juízo Final.


O cenário é simples e será o elemento unificador de todas as histórias. Nele, vemos um porto onde estão paradas duas barcas que levarão ao Céu ou ao Inferno e duas personagens que também estarão em todas as cenas : o Anjo, capitão da barca da Glória e o Diabo, capitão da barca do Inferno.


A peça apresenta uma forma circular, em que a progressão se dá pela repetição da situação apresentada: as pessoas morrem e chegam ao cais para embarcarem ao que elas pensam ser seu destino merecido ( retomando uma imagem muito conhecida na Antiguidade, a de Caronte, o barqueiro de Hades). Cada personagem é convidada a entrar na barca pelo Diabo, recusa-se, vai ao Anjo tentando argumentar sobre suas virtudes e retorna, conformada em ir ao Inferno. Essa é a estrutura que se repete. Há 13 personagens que se sucedem nesse cenário.


As personagens agem de acordo com sua condição social, são chamadas personagem-tipo, não há conflitos psicológicos no texto. Estão definidas pelo que carregam consigo no momento da morte e pela sua linguagem. Aliás, essa é uma das preciosidades desse texto, o uso estético das variantes linguísticas, que põe em tensão os discursos sociais circulantes na sociedade portuguesa. Gil Vicente usa registros de baixo calão ao lado latim jurídico e religioso, criando a caracterização das personagens tipo pelo linguagem de cada grupo social. E quem são as personagens? Vou enumerá-las na mesma ordem que aparecem no texto:


1- Diabo- gaiato, irônico, muito falastrão, fala em latim com o padre, o corregedor e o procurador, mostrando ser bem fluente no "juridiquês".

2- Anjo - muito sério e solene. Fala bem pouco na peça.

3- Fidalgo- Representa a nobreza. É cerimonioso, chega vestido com uma longa cauda ( o diabo o chama de senhora rs) e acompanhado de um servo que carrega sua enorme cadeira, símbolo de status social. É arrogante e rico . Descobre que irá para o Inferno como seu pai pois, segundo o Anjo, desprezou os pequenos e foi um tirano.

4- Onzeneiro- É o agiota, símbolo da ganância. Chega carregando um grande saco, tem esse nome por cobrar juros de 11% em empréstimos. O Diabo o chama de "meu parente" e diz que agora o onzeneiro vai servir a quem tanto lhe ajudou e ordena-lhe que pegue um remo.

5- Joanne, o parvo - O parvo é uma personagem tradicional dos contos de tradição popular. Apesar de ser nomeado, é um joão, uma pessoa "que não é ninguém", como ele mesmo se identifica para o Anjo. Não traz nada, apenas seu linguajar vulgar. Morreu de caganeira. Fala o que lhe vem à cabeça e, por sua inocência é o único que ousa xingar o Diabo durante 27 versos do texto e, revoltado com o cornudo, dirige-se à barca da Glória. Lá, o Anjo lhe diz que seus pecados aconteceram por ignorância e que está disposto a deixar que entre , mas pede-lhe que aguarde do lado de fora. Não sabemos se entrou ou não. ( lembra muito João Grilo, do Auto da Compadecida)

6- Sapateiro- Representa o comerciante que enganou os consumidores com seu ofício. Vem vestido com um avental e carregado de fôrmas usadas em seu trabalho. O Diabo irônico lhe pergunta " santo sapateiro honrado/ como vens tão carregado?" trazendo uma carga interessante de ambiguidade para o termo carregado . O sapateiro reclama pra si as vantagens prometidas pelas missas e ofertas que ele fez em vida. A resposta é que ele jamais confessou e se arrependeu de todas as vezes que explorou e roubou de seus fregueses. O Anjo também lhe nega entrada na barca da Glória por ganância.

7- Frade - Chega dançando e cantando, portando escudo, capacete, espada e trazendo Florença, sua mulher. O Diabo demonstra bastante intimidade com os gostos mundanos do frade, convida-o para entrar na barca para um serão e elogia Florença, uma fermosa. Ao descobrir o destino infernal, o frade apela para seu hábito e para seus "salmos rezados". Não consegue nada, resolve ir a outra barca e lá sofre deboches do parvo e um total desprezo do Anjo, que não lhe dirige uma palavra sequer.

8- Brísida Vaz, a alcoviteira- Traz móveis, cofres, jóias e almofadas, além de 600 hímens postiços e uma arca de feitiços. Recusa-se a entrar na barca do Inferno argumentando que em vida sofreu demais, suportou muitos castigos e que se fosse ao fogo do Inferno , pra lá também haveria de ir todo mundo. Vai ao Anjo , sua linguagem é pura sedução e Gil Vicente trabalha a ambiguidade entre a linguagem da religião e a da prostituição, usando palavras como conversão, salvação e perda. O Anjo a rejeita. O Diabo diz-lhe que ali será bem recebida e ela entra.

9- Judeu- Chega acompanhado de um bode, é a única personagem que se dirige logo à barca do Inferno, mas é impedido pelo Diabo de entrar. O judeu lhe oferece dinheiro para passar, aqui se percebe uma crítica de Gil Vicente ao judeu que "compra" tudo. Com mais uma negativa , interpela o fidalgo para que tome alguma atitude contra o Diabo, perde a paciência e, como o parvo, xinga o Demônio, que o afasta da barca, sugerindo que tente entrar na outra. O Parvo intervém, recriminando o fato de o judeu ir à barca da Glória, lembrando ao Diabo todas as suas faltas em vida : mijar nos finados na Igreja, comer carne em dia santo, afrontar o Salvador e mijar na caravela . Por fim, o Diabo resolve que o judeu irá a reboque, fora da barca. No início do século XVI, nem no Inferno há lugar para esse povo.

10- Corregedor- Vem carregado de processos e falando em Latim para intimidar o Diabo. Este faz questão de mostrar que o Latim também é a sua língua. É chamado ironicamente pelo Diabo de santo descorregedor.

11- Procurador - Vem carregado de livros e gastando seu Latim também. Ele e o Corregedor são parte da mesma crítica feita à corrupção da justiça. Nenhum dos dois se confessou antes de morrer, portanto, não foram perdoados de seus pecados. Interessante que Gil Vicente põe o Diabo , que já havia falado em Latim com o padre, usando essa mesma língua com os juristas, deixando implícita uma crítica ao uso do Latim em contratos e nos textos religiosos, o que o torna um instrumento diabólico de dominação e opressão dos comuns, muitas vezes ludibriados por uma linguagem inacessível, além de caracterizá-los como personagens vaidosos e elitistas. Essa crítica também aparece no parvo que fala um Latim macarrônico debochando dos juristas quando vão tentar entrar na barca da Glória. O Anjo , ao se recusar a recebê-los na barca, recrimina-os , dizendo " Como vindes, preciosos, sendo filhos da ciência?" Eles retornam conformados e entram na barca do Inferno.

12- O Enforcado - Chega com sua corda no pescoço. Deduz-se que fora convencido a enforcar-se no lugar de outra pessoa e agora percebe que fora enganado quando lhe disseram que a forca lhe livraria de seus pecados. A Igreja condena o suicídio.

13- Os Cavaleiros Cruzados - Vêm cantando louvores, paramentados com suas armas , morreram combatendo mouros e passam direto pelo Diabo em direção ao Anjo, que lhes permite a entrada para o Céu. Na figura dos Cavaleiros Cruzados, Gil Vicente tenta recuperar um passado distante em que os ideais da cavalaria, fé, fidelidade, vassalagem e coragem já não existiam mais. Teriam existido algum dia?

Texto adaptado em audiolivro:

1- Ler a peça , preferencialmente no texto original, para que se possa perceber a riqueza do romanço galaico-português e a semelhança com o Português do Brasil.

2- Discutir o texto. Qual a visão de mundo de Gil Vicente? Que personagens hoje estariam na barca? Quais teriam saído ?

3- Encenar a peça.

4- Atualizar a peça, retirando algumas personagens e incluindo outras.

5- Criar paródias do auto da barca do Inferno, mantendo sua estrutura original.

6- Ler o texto em diálogo com o Auto da Compadecida , de Ariano Suassuna, levantando questões a respeito da abordagem que cada autor faz de seus autos pelo próprio título de cada um : do Inferno /da Compadecida e o destino de cada personagem.

7- Trabalhar o gênero dramático e suas características principais.




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