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Catando a poesia que entornas no chão... (2)

  • Foto do escritor: Mônica Cyríaco
    Mônica Cyríaco
  • 1 de jul. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 25 de ago. de 2020


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Xilogravura de J Borges para a fotobiografia Revela-te, Chico.

É exatamente como me sinto ao iniciar esse post, catando a poesia de Chico, tentando apreendê-la, abraçá-la e, quem sabe, iluminá-la para outros olhos nem tão apaixonados quanto os meus.

Foi a partir da fina interação entre forma e conteúdo mencionada no post anterior, cada vez mais simbiótica na obra de Chico, que trabalhei seus textos em sala de aula. Vou usar as músicas Construção, a História de Lily Brown, Quadrilha e Caravanas.


Vamos começar por Construção, eleita em 2009 a melhor música brasileira de todos os tempos pela revista Rolling Stone. Abaixo, tentei fazer uma descrição também do arranjo musical feito por Rogério Duprat, por considerar que esse arranjo, aliado à qualidade do grupo vocal MPB4, enriquece a construção literária feita por Chico Buarque. Em sala de aula fica mais fácil chamar a atenção dos alunos para o arranjo, aqui espero que funcione.

Vamos iniciar ouvindo a música:

Tente acompanhar pela descrição abaixo

CONSTRUÇÃO

Introdução: violão


Amou daquela vez como se fosse a última voz + violão + contrabaixo + bateria

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado entrada do agogô ( sábado)

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado entram violas/ violoncelos

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público ( breque) suspensão do acompanhamento

Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego metais (trompetes /trombones)


Amou daquela vez como se fosse o último coro metais

Beijou sua mulher como se fosse a única coro metais voz cordas (única)

E cada filho seu como se fosse o pródigo coro voz solo cordas (pródigo)

E atravessou a rua com seu passo bêbado voz coro metais orquestra

Subiu a construção como se fosse sólido coro orquestra

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas voz oboés

Tijolo com tijolo num desenho lógico coro trompetes ( tijolo com tijolo)

Seus olhos embotados de cimento e tráfego voz comentário instrumental

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe coro comentário instrumental

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo coro

Bebeu e soluçou como se fosse máquina coro

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo coro comentário instrumental

E tropeçou no céu como se ouvisse música voz orquestra agogô pandeiro

E flutuou no ar como se fosse sábado coro

E se acabou no chão feito um pacote tímido coro

Agonizou no meio do passeio náufrago breque

Morreu na contramão atrapalhando o público voz à capella

( ambiente orquestral , notas de trompete, levada de samba, tímpanos, metais , vozes justapostas)

Amou daquela vez como se fosse máquina voz

Beijou sua mulher como se fosse lógico coro

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas voz metais

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro coro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe voz

E se acabou no chão feito um pacote bêbado coro breque instrumental

Morreu na contramão atrapalhando o sábado coro

( orquestra) Vocal

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir

A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir

Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir

Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair

Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir

E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir

E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir

Deus lhe pague.


A canção é dividida em três estrofes, as duas primeiras com 17 versos e a terceira com 7 versos. Na versão original há a inclusão da canção Deus lhe pague, funcionando dialogicamente com Construção.

Os versos são todos alexandrinos , versos de 12 sílabas métricas , com tonicidade na 6ª e a 12ª. Todas as palavras rimam na antipenúltima sílaba tônica, são as rimas esdrúxulas, difíceis de conseguir, já que as proparoxítonas são raras na Língua Portuguesa. Veja a divisão métrica:

A/mou/ da/que/la/ vez /co/mo/ se/ fos/se a/ úl/tima Há algumas especificidades na construção dessa letra que chamam a nossa atenção, pois há uma estrutura fixa que se repete por todo o texto,com modificações apenas na última palavra, justamente na proparoxítona.

O esquema a seguir deixa essa estrutura bem evidente:

Corpo fixo 1a. estrofe 2a. estrofe 3a. estrofe

1. Amou daquela vez como se fosse a última o último máquina

2. Beijou sua mulher como se fosse a última a única lógico

3. E cada filho seu como se fosse o único o pródigo -/-

4. E atravessou a rua com seu passo tímido bêbado -/-

5. Subiu a construção como se fosse máquina sólido -/-

6. Ergueu no patamar quatro paredes sólidas mágicas flácidas

7. Tijolo com tijolo num desenho mágico lógico -/-

8. Seus olhos embotados de cimento e lágrima tráfego -/-

9. Sentou pra descansar como se fosse sábado um príncipe um pássaro

10. Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe o máximo -/-

11. Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago máquina -/-

12. Dançou e gargalhou como se ouvisse música fosse o próximo -/-

13. E tropeçou no céu como se fosse um bêbado ouvisse música -/-

14. E flutuou no ar como se fosse um pássaro sábado um príncipe

15. E se acabou no chão feito um pacote flácido tímido bêbado

16. Agonizou no meio do passeio público náufrago -/-

17. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego público sábado


Após ouvir a canção , pergunte aos meninos

1- O que aconteceu?

2- O operário caiu ? Se jogou?

3- Por que caiu?

4- Por que se jogaria?

5- Que indícios encontramos para cada possibilidade?


Trabalhe com as inúmeras possibilidades existentes no texto:

1- Como está a personagem na 1a estrofe ? seu estado de espírito? como ele sai de casa? como chega ao trabalho? que sensações ele experimenta ao cair? que sensação você experimenta quando a personagem cai? O que/a quem sua morte atrapalha? ( utilize versos e vocábulos do texto para comprovar) Caiu ? Se jogou?

2- Repita as mesmas perguntas para a 2a estrofe e leve-os a responder: a personagem é a mesma? experimenta as mesmas sensações? como é seu trabalho? Como na segunda estrofe nós já sabemos o que acontece à personagem, explore o significado de o próximo : que crítica está aí subentendida?

3- Explore o uso do subjuntivo como se fosse...

4- Explore o uso de bêbado como adjetivo e como substantivo

5- Aproveite para ampliar o universo referencial do texto. Na década de 70, o Rio de Janeiro passou por um boom da construção civil, com obras como a ponte Rio-Niterói, aeroporto internacional, emissário submarino da Lagoa e a auto-estrada Lagoa-Barra, que ocasionou o crescimento dos bairros da Barra da Tijuca e São Conrado. Havia inúmeras obras espalhadas pela cidade, com mão de obra barata de operários que eram submetidos a um regime de trabalho com pouquíssimos direitos e praticamente ausência de leis de segurança do trabalho. O gráfico a seguir mostra bem esse momento.


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Gráfico elaborado pelo Eng. Civil e de Segurança Carlos Marangon

Agora deixo aqui a minha leitura dessa magnífica canção. Construção não é uma música de protesto, é muito mais do que isso. Sua interpretação não se esgota na questão social, ela faz com que desloquemos nosso ponto de vista e assumamos com empatia o ponto de vista do operário, do trabalhador sem visibilidade social. Vinícius já tinha chamado nossa atenção para a importância desse operário que construía casas alheias, mas não tinha a sua, desse trabalhador que cresce e se constrói à medida que toma consciência de seu fazer.


Mas se o operário de Vinícius ainda tem esperança, ainda pode dizer não, o operário de Chico Buarque já não tem mais nada, apenas a consciência de sua mais-valia. Vejo, na primeira estrofe, um homem que se despede da mulher e dos filhos e sai de casa com seu passo tímido, deprimido, consciente de sua coisificação , já que sobe a construção maquinalmente, ergue paredes sólidas, mas em seus olhos há lágrimas que se misturam ao cimento. Come mal, mal tem tempo de descanso, mas naquele dia, como se fosse sábado, ele se demora. Bebe e soluça. Empanturra-se? Chora? Ao cair, sente-se como um pássaro. Liberta-se? ( essa parte da música com a entrada dos violinos é lindíssima!) e morre atrapalhando o tráfego. Jogou-se?


Na segunda estrofe, já encontro um operário que se sente inferiorizado, absolutamente precarizado, alienado de sua condição de ser humano, quase posso sentir nesse homem seu sofrimento. Ama sentindo-se o último, já sai de casa com seu passo bêbado. Não tem nenhuma firmeza nem solidez ao subir a construção e ali ergue paredes mágicas ( teria bebido já de manhã? ) Olha muito pra baixo, o tráfego se mistura ao cimento dos olhos. É tão inferiorizado que come feijão com arroz como se fosse o máximo, dança e gargalha como se fosse o próximo _ a cair? Tropeça como se ouvisse música e flutua como se fosse sábado. Caiu. E atrapalhou o público ( o que me sugere haver muitos olhando para a cena, preocupados talvez com o perigo? com a falta de segurança da obra? com o operário desequilibrando-se?)


Na 3a estrofe, muito mais curta, pois todas as referências já foram dadas, o trabalhador me parece completamente absorvido pela roda viva da vida : ama, beija, trabalha, come , descansa e morre, maquinalmente, sem a menor humanidade, não importa pra ninguém , causa até mesmo pouca perturbação, pois morre num sábado.


A estrutura fixa evidencia um cotidiano monótono , repetitivo. Ao trocar as proparoxítonas de lugar, vamos experimentando novos pontos de vista, novos olhares, novas relações entre aquilo que nos é contado na canção: as relações tensas entre capital e trabalho, a coisificação do trabalhador, a monotonia do cotidiano, as relações familiares, a vida sem graça que passa, o imponderável, enfim, tudo aquilo que denuncia a nós mesmos a nossa alienação e a nossa humanidade. Ou a falta dela.

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