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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Decameron

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Decameron, Giovanni Boccaccio, 1348 -1353.

John Willian Waterhouse, Liverpool, 1916

Como disse na lá no primeiro post , o mundo já acabou e recomeçou várias vezes e esse livro clássico da literatura mundial conta a história de um desses fins de mundo, o da peste negra, que atingiu a Europa no fim da Idade Média e que só em Florença matou, segundo o autor no prefácio, 100 mil florentinos nos meses de março a abril de 1348.


Decameron (ou Decamerão) é uma coleção de 100 histórias contadas por um grupo de 10 jovens que se confinaram no campo por 15 dias para fugir da peste negra que grassava em Florença. Essa é moldura narrativa. Os dez jovens, sete moças e três rapazes propõem-se a fugir da cidade e ocupar um castelo nos arredores da cidade, cada um leva um criado.


Para justificar a necessidade dos jovens de se isolarem em quarentena de duas semanas, o autor faz uma descrição inicial sobre a situação caótica em que se encontrava aquela cidade , em 1348. Essa descrição foi tão fidedigna, que até hoje serve de fonte histórica para que se possa estudar sobre a Peste naquele período. Vou transcrever alguns trechos desse verdadeiro documento fornecido pela Literatura, porque considero impressionante a semelhança entre o relato de Boccaccio e a nossa realidade em 2021, o que reforça a certeza de que não mudamos, embora o fim do mundo tenha ocorrido ali, cá estamos nós, outra vez, vivendo um outro fim.

Inicialmente o relato mostra como a cidade foi pega de surpresa e já percebemos uma crítica ao discurso religioso de que a peste era castigo divino

Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo, começou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ficou purificada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para esse trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Pouco adiantaram as súplicas humildes, feitas em número elevado, às vezes por devotos isolados, às vezes por procissões dirigidas a Deus.

Depois, a constatação de que ninguém sabia como lidar com a doença desconhecida. Aqui há certa ironia com curandeiros e cientistas.

Nem conselho médico, nem virtude de mezinha ( medicamento caseiro) alguma parecia trazer cura ou proveito para o tratamento de de tais doenças. Ao contrário. Fosse porque a natureza da enfermidade não aceitasse nada disso, fosse porque a ignorância dos curandeiros não lhes indicasse de que ponto partir, e por isso mesmo, não se dava o remédio adequado. Tornara-se enorme a quantidade de curandeiros, assim como de cientistas. Contavam-se entre eles homens e mulheres que nunca haviam recebido uma lição de medicina. Assim como era certo que poucos se curavam, também é certo que, ao contrário desses, quase todos, após o terceiro dia, faleciam

Vemos nesse trecho a dificuldade de lidar com os doentes e a violência da transmissibilidade da peste, o medo das pessoas e o individualismo que esse sentimento impunha à comunidade

Esta peste foi de extrema violência ; pois ela atirava-se contra os sãos a partir dos doentes, sempre que doentes e sãos estivessem juntos/.../ Não apenas o conversar e o cuidar dos enfermos contagiavam os sãos com esta doença, porém mesmo o ato de mexer nas roupas , ou em qualquer outra coisa que tivesse sido tocada ou utilizada por aqueles enfermos, parecia transferir, ao que nelas bulisse, a doença referida. /.../ De tais circunstâncias nasciam, naqueles que ainda estavam vivos, muitos terrores e muitos lances de imaginação. E quase tudo era dirigido para um fim bastante cruel: o de se ficar enojado dos enfermos e de se fugir de suas coisas e deles. Agindo assim, cada um supunha estar garantindo a saúde para si mesmo.

As observações sobre os comportamentos antagônicos das pessoas parecem sair dos nossos jornais ou dos comentários das redes sociais

Pessoas havia que julgavam que o viver com moderação e o evitar qualquer superfluidade muito ajudavam a resistir ao mal. Formando seu grupo exclusivista, tais pessoas viviam longe das demais. Recolhiam-se e trancavam-se em casas onde nenhum doente estivera./.../ Não ficavam a palestrar com ninguém, nem queriam falar de nenhum caso de morte, ou de doença, daqueles que estavam do lado de fora da casa que habitavam. Passavam as horas entretidos com músicas e com os prazeres que pudessem ter. Outras pessoas, levadas por uma opinião bem diversa declaravam que, para tão imenso mal, eram remédios eficazes o beber abundantemente, o gozar com intensidade, o ir cantando de uma parte a outra, o divertir-se de todas as maneiras, o satisfazer o apetite fosse de que coisa fosse, e o rir, e troçar do que acontecesse ou pudesse suceder/.../ bebiam imoderadamente e sem modos. E com mais desbragamento agiam na casa alheia, obrigando os donos a escutar o que lhes desse na telha dizer. E podiam agir assim sem grandes preocupações, porque cada um _ quase como se não houvesse mais viver_ já deixara ao léu as suas coisas, assim como deixara ao deus-dará a própria pessoa. /.../ Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, quer divinas, quer humanas, desmoronara e dissolvera-se/.../ Em consequência de tal situação, permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.

Sobre o abandono dos doentes à própria sorte e a importância de trabalhadores domésticos

Aos homens e mulheres que ficavam doentes e eram abandonados pela família , não restava outro recurso senão a caridade dos amigos ( e destes, poucos restavam) ou a avareza dos empregados domésticos. A estes eram pagos fabulosos salários para estarem ali para quando fosse pedido algo pelo doente ou para olhá-los enquanto faleciam, eles mesmos muitas vezes também pereciam junto com seus ganhos.

O número de mortos e a dificuldade da despedida

Além disso sobreveio a morte de inúmeras pessoas que, certamente, se tivessem merecido ajuda, teriam sobrevivido. Em decorrência da escassez de serviços no momento próprio, que os doentes precisavam mas não alcançavam, e também em vista da violência da peste, era tão grande o número dos que faleciam, de dia e de noite, na cidade, que provocava estupefação escutar, e ainda mais ver, o que ocorria. Porque por força das circunstâncias muitas coisas que contrariavam os costumes básicos de qualquer cidadão começaram a existir entre os que permaneciam vivos. /.../ As cerimônias fúnebres quase se extinguiram./.../ Eram incontáveis as pessoas que partiam desta vida sem nenhuma testemunha. Eram em número reduzidíssimo aqueles aos quais eram concedidos os prantos piedosos e as lágrimas sentidas de seus próprios parentes.

A morte que mata mais os pobres, evidenciando a desigualdade social

O tratamento dado às pessoas mais pobres, e à maioria da gente da classe média, era ainda de maior miséria. Em sua maioria tal gente era retida nas próprias casas, ou por esperança, ou por pobreza. Ficando, desse modo, nas proximidades dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam adoeciam aos milhares por dia; como não eram medicados nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam todos quase sem redenção.

O colapso dos cemitérios

Tão grande o número de mortos que, escasseando os caixões, os cadáveres eram postos em cima de simples tábuas. Não foi só um caixão a receberem dois ou três corpos simultaneamente. A terra sagrada das igrejas já não era suficiente para tantos corpos, por isso passaram-se a edificar igrejas em cemitérios. Eram tantos cadáveres que eram empilhados como as mercadorias dos navios: cada caixão era coberto, no fundo da sepultura, com pouca terra. Sobre ele , outro era posto o qual, por sua vez, era recoberto, até que se atingisse a boca da cova, ao rés do chão.

É esse contexto caótico que serve de moldura narrativa às histórias que Boccaccio vai nos contar. Ao terrível cenário agonizante e claustrofóbico , o escritor vai opor uma narrativa leve, solar.

Sete mulheres estão numa igreja, algumas se conhecem, todas estão vivendo o pior da pandemia. A mais velha delas, Pampineia, sugere que saiam de Florença e que se instalem nas cercanias da cidade onde, segundo ela, "existe em abundância tudo o que lhe possa ser indispensável" ( aqui lembrei de Cananeia, Iguape e Ilha Comprida!) . Ela continua, buscando convencer as outras :

Teremos ali aquele divertimento, aquela alegria, aquela satisfação que pudermos obter, sem ir além, em nenhum ato, dos limites da razão. Ouvem-se ali os passarinhos cantando, vê-se espalhar o verde pelas colinas e planícies; contemplam-se os campos plantados de cereais, que ondulam da mesma maneira que o mar o faz; ali há árvores de mil formas; vê-se o céu mais abertamente; mesmo enfurecido ainda, o céu nem por isso nos nega suas belezas eternas, tais belezas são muito mais merecedoras de contemplação do que que os muros despidos de nossa urbe. Além disso, o ar ali é muito mais agradável; existe lá maior quantidade das coisas necessárias à existência nesses tempos; e o número de aborrecimentos é muito menor.

Depois desse apelo , desnecessário dizer que todas concordam, embora algumas se sintam inseguras. Resolvem partir já no dia seguinte, cada uma com sua aia ( são mulheres da nobreza) e a proposta é que fiquem o tempo necessário para constatarem que não estão doentes, ou seja, farão uma quarentena. Nesse momento, três rapazes, já conhecidos de algumas delas se juntam ao grupo, aceitam a proposta e o grupo parte no dia seguinte.


Combinam, então, que abandonariam suas preocupações na porta da cidade que deixavam pra trás e que viveriam no campo festivamente. Encontram um lugar no alto de uma colina, um palácio em perfeitas condições e completamente abandonado, com cômodos amplos e limpos, adega cheia, poços de água fresca, jardins de maravilhosa vista. ( ô sorte! )


Depois de se instalarem e de passearem por todos os espaços, resolvem estabelecer algumas regras de convívio, como tomar cuidado com os lugares para onde fossem e de onde regressassem, que não trouxessem notícias desagradáveis, que as refeições fossem feitas ao ar livre , que lavassem as mãos antes das refeições e que zelassem pelo asseio próprio e do local, que tivessem tempo para cantar, dançar e tocar instrumentos e que às 15 horas, diariamente se reunissem para tecerem narrativas. Nesses encontros seriam narradas dez histórias durante dez dias para espantar o tédio. Depois disso, cada um se divertiria como bem lhe aprouvesse.

Que maravilha, amigos! Contar histórias para viver!

Todos concordam , as narrativas só não ocorreram nos dias santos, sexta e domingo. Todas as histórias tinham um mote, um tema, que era dado pelo "rei" ou "rainha" do dia.

Essas histórias foram assim divididas: 1ª jornada, tema livre; 2ª jornada, histórias de contratempos com finais felizes; 3ª jornada, histórias de desejos alcançados ou de coisas perdidas e recuperadas; 4ª jornada, histórias de amor com finais infelizes; 5ª jornada, histórias de acontecimentos felizes que tenham ocorrido a algum amante, depois de situações tristes e cruéis; 6ª jornada, histórias de quem com esperteza consegue safar-se de algum perigo ou zombaria; 7ª jornada, histórias de mulheres que enganaram seus maridos; 8ª jornada, histórias de burlas diárias, quer sejam de mulher contra homens, de homens contra mulheres ou homens contra homens; 9ª jornada, histórias pessoais sobre aquilo que lhes é mais agradável ou que lhes dá prazer e a 10ª jornada , histórias de pessoas generosas a respeito de fatos do amor, entre outras coisas. Após cada jornada de narrativas, o grupo canta, dança, recita poemas e escolhe o "rei" ou "rainha" que dirigirá o grupo no dia seguinte.


A inovação desse livro está em que as 100 narrativas de temas diversos eram histórias de tradição oral que circulavam na sociedade florentina do século XIV e que falavam das belezas e prazeres do amor, de sexo, traições, armações políticas, de personagens conhecidos e de outros nem tanto, temas que nunca haviam frequentado a literatura medieval, cuja preferência eram as vidas de santos, amor cortês ou romances de cavalaria. Elas não têm elementos transcendentais ou religiosos, não apresentam moralismos. Quando Boccaccio as coloca na boca de suas personagens, é como se deixasse pra trás, lá nos portões da cidade, aquela era moribunda e inaugurasse um novo tempo, a única transcendência possível para aqueles dez jovens é através dos laços criados pela arte da narrativa, do canto e da dança, com o hedonismo e o princípio do prazer se contrapondo à morte. Por isso muitos críticos atribuem ao escritor a "inauguração" do Renascimento , já que o livro antecipa a concepção antropocêntrica que tomaria conta do pensamento filosófico do século XV .


Boccaccio, com seu livro, fez nascer um novo tempo. E nos apresentou uma saída para a terrível destruição causada pela peste: um projeto de vida que leve em conta a alegria, a amizade, o retiro para a natureza, fazendo questão de afirmar em suas histórias que as únicas nobrezas que valem a pena são a inteligência e a virtude, vividas com muita, mas muita arte!


No meu manual de recomeço considerei a saída de Boccaccio, acredito que ouvir e contar histórias seja um modo de amar. Através das histórias contadas, aqueles jovens sentiram cessar a dor, a melancolia e a angústia.


Obs: Ontem visitando uma livraria pela 1a vez depois de quase dois anos, me deparei com um livro chamado O Projeto Decamerão, Rocco, 2020. Achei geniais a coincidência( com o meu tema) e a ideia, comprei e vou iniciar a leitura. Em março de 2020, os editores do New York Times criaram esse projeto , uma antologia de histórias escritas enquanto a pandemia da Covid-19 atingia os quatro continentes e chamou para escrevê-las grandes nomes da Literatura, como Margaret Atwood e Mia Couto, o brasileiro Julián Fuks ( um texto noir que mistura a ansiedade gerada pela pandemia a nossos problemas políticos), entre outros. As narrativas foram escritas online e 29 foram selecionadas por uma equipe do NYT e publicadas nesse livro. Deixo o link do texto de Fuks, em inglês, no fim desse post.

Então, é isso... contemos histórias , queridos animais narrativos, histórias de nós e dos outros, histórias de superação e de queda, histórias engraçadas e românticas, se possível em grupo, numa roda de amigos, ao ar livre, quem sabe? Mas contemos.


Usei nesse post o livro Decamerão, de Giovanni Boccaccio, trad. Torrieri Guimarães, cedida para o Círculo do Livro, São Paulo, 1987.


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