top of page
  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Em Triana, sevilhize-se*

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Esta é a Sevilha trianera, Sevilha fundo de quintal, Sevilha de lençol secando, a que é corriqueira e normal. Lições de Sevilha, João Cabral de Melo Neto

Triana é o bairro boêmio de Sevilha e o que guarda a tradição do flamenco, das cerâmicas e da navegação, portanto, o bairro de ciganos, artesãos, marinheiros e pescadores, poderíamos dizer, dos pobres. Não foi à toa que o bairro foi o escolhido para ser a sede da Inquisição no século XV, ali seria o lugar ideal para assustar e perseguir qualquer um que saísse do estabelecido pelos reis católicos, que ainda lutavam para estabelecer definitivamente seu poder real. Traiana ou Trajana, o nome do bairro aponta para uma história de assentamentos romanos da época do imperador Trajano.

Mais tarde, os almoádas construíram a ponte de mesmo nome, ligando os dois lados do rio Guadalquivir.


É também um dos cenários da ópera Carmen, a cigarreira, que trabalhava na fábrica de tabacos que conhecemos no post anterior, mas, sendo cigana, só poderia morar mesmo em Triana!

Carmen é onipresente em Sevilha e , particularmente, em Triana. É a protagonista da ópera e representa a mulher libertária e livre sexualmente. Na história, a cigana se vê perseguida pelo loucamente apaixonado D. José que, inconformado por ter sido trocado por outro, o toureiro Escamillo, a obriga a escolher seu amor ou a morte. Carmen prefere a morte a abrir mão de sua liberdade de escolha. Morre assassinada no último ato e vira um símbolo da liberdade e da paixão em pleno século XIX. Repare que ela não morre de amor, mas por não poder amar quem ela quer. A ópera foi escrita em francês ,por Georges Bizet, baseada no romance Carmen do escritor romântico também francês Prosper Mérimée, mas é cheia de referências à música cigana , a canções folclóricas ibéricas, como o fandango, a sevilhana e seguidilhas. A ária mais conhecida de todos os tempos é Habanera, um ritmo cubano transformado em clássico pelo compositor francês. Lembre-se de que Cuba foi a última colônia da Espanha a se libertar em 1898, portanto, o intercâmbio cultural entre Cuba e Triana era intenso.

Aqui, uma habaneira cubana :

E aqui a Habaneira da ópera Carmen, que traz suas reflexões sobre os perigos do amor, em que ela deixa bem claro que se deve tomar cuidado com os amantes e com ela mesma:

Essa ópera foi muito criticada porque fugiu a padrões operísticos da época, pois apresentava como protagonista uma mulher dividida entre dois amores, com vontade própria, livre, sensual e assassinada no último ato por sua recusa a negar sua liberdade. O filósofo Niezsche afirma que essa ópera representou pra ele um bálsamo de vitalidade e sensualidade em um ambiente artístico que tentava elevar o homem através da rejeição do corpo, da sexualidade e da sensualidade, ou seja, dos apetites mundanos. Carmen seria a negação de tudo isso. Era exuberante na música, extremamente expressiva na sensualidade e vivacidade dos personagens, trazendo para a música da época um alento de realidade trágica pela afetividade amoral da personagem que enaltece a alegria e a embriaguez. A experiência dionisíaca, pra usar a expressão do filósofo, pode ser desfrutada nesse trecho do fim do segundo ato :

Segue-nos através dos campos, vem conosco para a montanha, segue-nos e irás acostumar-te quando vires, ali, como é bela a vida errante; por país o universo, e por lei, a tua vontade E sobretudo, o mais embriagador: A liberdade ! A liberdade ! O céu aberto, a vida errante, por país todo o universo, por lei a vontade, e sobretudo, o mais embriagador: A liberdade, a liberdade ! ( Fim do ato II )

Nesse site há muitas outras informações interessantes sobre a ópera Carmen: https://musicalidades.com.br/opera-carmen-historia/

Por ser um bairro tão intimamente ligado ao rio, dali partiram os marinheiros que iriam se aventurar na conquista da América.

Ali também se misturaram aos ciganos, que chegam à Espanha no século XV, os mouros clandestinos, os judeus ( nem sempre) convertidos, os pobres dispostos a tudo ao se aventurar ao mar sem fim, ou seja, um caldeirão de marginalizados e excluídos que intercambiaram fome, línguas, culturas, festa e amalgamaram tudo isso no que hoje conhecemos como cultura flamenca.

Essas são as três principais personagens que aparecem na entrada do Centro de Informações turísticas do bairro. Com elas, Triana se apresenta no tempo, cronologicamente. Mas Triana é muito mais! Vale a pena se perder pelos mercados, pelas ruas do bairro e passear pela beira do rio.

O passeio pela margem do Guadalquivir é uma delícia e tem uma grande concentração de bares e de danças flamencas. Dessa margem, Passeo de Cristóbal Colón, temos uma vista bacana de Sevilha. A proximidade com o rio causou muitos transtornos para o bairro ao longo do tempo, constantemente inundado pelas cheias, chegava mesmo a separar as duas Sevilhas , a rica e a pobre. Hoje esses problemas foram resolvidos.

De Triana podemos avistar a Torre do Ouro , também um monumento da época árabe que resistiu até nossos dias. Inicialmente, essa torre tinha como função vigiar quem entrava e quem saía do Guadalquivir, mais tarde serve também como capela, como prisão, depois como depósito de mercadorias que chegavam da América e hoje é um museu naval. Recebe esse nome devido a ter a parte superior revestida de azulejos dourados que refletem a luz do sol. A vista lá de cima vale a pena. É de onde saem os passeios de barco pelo rio, que ainda hoje é navegável até o Oceano Atlântico. Nos slides abaixo, um pouquinho da visita a Triana num dia nublado.

Outro ponto de interesse é o mercado de Triana, construído sobre as ruínas do antigo Castelo de São Jorge, que foi também tribunal da Inquisição. Ali você pode almoçar, experimentar tapas tradicionais, escolher qualquer produto do mercado a ser preparado na hora, como em quase todos os mercados da Espanha. No de Triana há até um teatro que oferece shows de flamenco e visitação às ruínas do antigo castelo.

Há outros locais do bairro que também trarão de volta tanto as lembranças do passado inquisitorial, como o Callejón de la Inquisición, quanto do passado de pobreza dos trabalhadores do século XIX, como os corralles , pequenos cortiços que recebiam os imigrantes, uma espécie de pequena vila com uma fonte de água limpa em seu centro, onde as pessoas se reuniam, inclusive para as sessões de música e dança, chamadas de sevilhanas. A gente pode até imaginar Carmen , a cigarreira, morando e dançando nesses corralles. Hoje eles ainda são habitados e são considerados pontos de interesse cultural, muito visitados por turistas. Não é à toa que dizem ser Triana a autêntica alma de Sevilha.

Outro passeio legal é visitar a fábrica /museu de cerâmica, a lojinha é uma graça, cheia de lembrancinhas e de peças bem tradicionais vistas pelo bairro, como letreiros, números de casa, mosaicos de santos, entre outros. A cerâmica é uma tradição sevilhana e há várias fábricas pelas ruas do bairro, essa tem de especial o museu inaugurado em 2013.

Outra imagem abaixo é a da Casa Mensaque, sede distrital de Triana. A casa foi construída no início do século XX , no período da Exposição Iberoamericana de 1929, mesma época da construção da Praça de Espanha, que conhecemos rapidamente no primeiro post sobre Sevilha. O estilo Regionalista recupera a tradição sevilhana e espanhola da cerâmica pintada a mão, arte muito valorizada pela burguesia da época. Achei interessante essa releitura do passado medieval aparecendo na arquitetura no fim do século XIX início do XX. Em Barcelona , esse estilo investigativo das tradições das raízes culturais se deu sob o nome de Modernismo e lá, muitos arquitetos produziram edifícios únicos recuperando também a tradição dos azulejos.


O flamenco

A maior e mais imperdível atração de Triana, o flamenco, eu perdi :(

Na época, para me consolar, pensei que seria uma desculpa pra voltar, agora, em tempos de pandemia, já nem sei...

O flamenco é uma arte que une a música, o canto e a dança e é impossível determinar uma única origem cultural. Como o nosso samba, que é "pai do prazer e filho da dor" **, o flamenco se constituiu no cruzamento das culturas árabe, judaica, cigana e cristã.

E essa mistura acontece em Triana, como já foi dito, por conter ali populações de árabes, judeus e ciganos que, misturados, passavam despercebidos pelo sistema vigente. Do árabe, recebeu aspectos melódicos, como as moaxajas xarchas e zéjel, formas poéticas que influenciaram as cantigas trovadorescas; os rítmicos, principalmente no uso de instrumentos musicais como o alaúde e a percussão e , principalmente, no uso do cante utilizado com a técnica do vibrato ( várias notas numa mesma sílaba) , principalmente do cante a palo seco , ou seja, sem acompanhamento musical, também conhecido como cante andaluz. Dos judeus sefarditas , o flamenco conta com ecos do cante sinagogal em muitos cantes, como o jondo

( fundo) representante do cante primordial, aquele que está na base de todos os outros dessa arte. Dos ciganos, recebe a influência do acompanhamento da guitarra ao cante soleá, que significa solidão, trazendo o equilíbrio entre o cantaor e o instrumento

No hay nadie en este mundo que te quiera más que yo debajo tierra me meto donde no me vea ni Dios Por que te llamas Aurora Que me acuesto a la raya del día Si te llamaras Custodia a la iglesia no saldría Si te llamaras Custodia a la iglesia no saldría Te compro más camisas Te compro más camisas Y porque yo no visto altares 'pa' que otro diga misa Ni te miro ni te hablo ni te compro más camisas La noche del barro cayó la noche del barro cayó la noche del barro cayó la noche del barro y en vez de salí desnuda salió 'vestia' de blanco y en vez de salí desnuda salió 'vestia' de raso Candelas del cielo del cielo caigan candelas y más candela le caiga a tu mare encima por tener malina lengua Yo no me he muerto de pena porque no supe sentir y a mi corto entendimiento le agradezco al vivir yo no me he muerto de pena porque no supe sentir (Triana,1847)

Mas um dos cantes flamencos mais antigos de que se tem notícia é a seguiriya, que começa com um grito terrível, um cante chorado, sentido, fundo. Deriva dos cantos fúnebres, o tema da morte é a inspiração, daí o caráter dramático, cheio de ais e lamentos, roupas negras (quando há bailadora) e expressões contritas. Esses cantes põem na palavra cantada/declamada toda a força poética, é como se estivéssemos vendo os primórdios do gênero lírico.

Tu no tienes la culpa ni yo a ti te culpo,Tu no tienes la culpa ni yo a Me lo alevantan, me lo murmura “ay que salvar la lenguas que andan por el mundo” Tu no tienes la culpa ni yo a ti te culpo. A la sierra dormiria yo, me quiero ir Y a la sierra me dormiria yo, me quiero ir Donde no hubiera morones y cristianos que hablen de mi Y a la sierra me iria yo, me quiero ir. Y de noche no duermo, De dia tampoco Pensando en mi compañero, yo me vuelvo loca

O flamenco , a partir do século XVIII se enriquece das sevilhanas ou alegrias, apresentações mais alegres e festivas .

Essas manifestações culturais facilitaram a convivência de grupos excluídos da sociedade sevilhana e permitiram a solidariedade em momentos de repressão. Inicialmente restritas a círculos marginalizados, a partir do séc XIX passam a frequentar os primeiros cafés cantantes e saem da clandestinidade, misturando ao cante as danças e cantos populares, os instrumentos de percussão, as palmas, o sapateado, a dança e a poesia dos versos declamados.

Muitos artistas espanhóis passam a olhar para a força dessa cultura popular. No início do século XX , Garcia Lorca , poeta e dramaturgo nascido em Granada _onde há um museu em sua homenagem_ mergulhou fundo na cultura popular andaluza e escreveu seus dois livros de poemas inspirado na cultura flamenca, Romance gitano ( 1928) e Poema del cante jondo (1931) e uma peça, Bodas de sangre ( 1932) . Lorca soube como ninguém aliar suas raízes culturais da Andaluzia aos movimentos de vanguarda que surgiam na Europa nos anos 20, tendo convivido com Salvador Dalí, Manuel de Falla , Pablo Neruda. Com Falla, organiza o Festival de cante jondo em Granada, em 1922, que serve de marco para o renascimento da cultura andaluza.

Mais tarde, ganhou o mundo pelo violão de Paco de Lucia, o grande nome do flamenco, que renovou o estilo ao misturá-lo com jazz, bossa nova, blues e salsa. Um pouquinho de genialidade aqui, nesse documentário de 2014, feito pela TV Andaluza, para homenagear o músico que haviam acabado de perder :

Sua morte, aos 66 anos, transforma-o numa verdadeira lenda da cultura espanhola, capaz de ganhar um Grammy Latino de melhor álbum em 2014 por Canción Andaluza postumamente. Hoje o Flamenco é uma instituição , conta com aficionados de todo o mundo e inúmeras páginas na internet que tratam do assunto. Uma delas é https://www.expoflamenco.com/en


Como despedida daquilo que não vivi ( rs) deixo um vídeo do Balé Nacional de Espanha, sensacional, feito para comemorar o dia internacional do flamenco 2019.

"Dir-se-ia, quando aparece/ dançando por seguiriyas/ que com a imagem do fogo /inteira se identifica." Estudos para uma bailadora andaluza, João Cabral

Ah, ia esquecendo de dizer uma coisa muito importante! O flamenco e as touradas são partes da mesma cultura, observem o jogo de corpo, a postura e os movimentos dos bailarinos e a os dos toureiros, verão muita semelhança. Dizem os apaixonados que é a mesma dança que desafia a morte, não curto touradas, então nem tentei conhecer. Mas fica a dica.



Notas:

* neologismo emprestado de João Cabral, no poema Sevilhizar o mundo ; teria o sentido de civilizar sevilhanamente o mundo, dando-lhe a forma, o ritmo, a dança, a tensão do ser capaz de vencer o arbítrio e a intolerância.

** Desde que o samba é samba. Caetano & Gil, 1993


LINKS DE LITERATURA

Garcia Lorca :

Peça: Bodas de sangue, 1933.

Filme: Bodas de Sangue ( 1981), de Carlos Saura. Adaptação da peça para o cinema : https://www.youtube.com/watch?v=xWPZ0m6ERzw


João Cabral de Melo Neto :

Livro: Obra completa. Nova Aguilar, 1994. 1ª edição incluiu Andando Sevilha.

Livro: Poemas sevilhanos. , 1992. Nova Fronteira

Livro : A literatura como turismo. João Cabral de Melo Neto, seleção e textos de Inês Cabral, 2016. Alfaguara.

Ópera:

1- Carmen, de Bizet, 1875, completa, parcialmente legendada : https://www.youtube.com/watch?v=3h-fP4zSH40

2- Vídeo com o resumo da ópera:

Em tempo, deixo aqui uma receita que trouxe de Sevilha. Sempre trago um livro de receitas de cada lugar que visito, porque a comida é um lugar onde guardamos nossa memória afetiva. Em Sevilha se bebe muita sangria e muita cerveja, a preferida deles é a Cruz Campo. Consomem muita carne, o onipresente rabo de toro está em quase todos os cardápios de tapas, lembra muito nossa rabada, mas os acompanhamentos e os temperos são diferentes. No entanto, a ensalada de queso de cabra foi minha queridinha, vou deixá-la aqui como sugestão de um prato único, leve e delicioso.

INGREDIENTES

folhas de alface, rúcula e acelga

1 queijo de cabra redondo

10 nozes

morangos cortados ao meio

tomatinhos cortados ao meio

Vinagrete ao mel

6 colheres de sopa de azeite de oliva extra-virgem

2 colheres de sopa de vinagre balsâmico

1 colher de sopa de mel

Monte a salada somente com os vegetais, como desejar. Numa frigideira , doure as nozes e reserve, só as acrescente à salada depois que esfriarem. Misture os ingredientes do molho vinagrete vigorosamente. Na mesma frigideira bem quente ( prefira aquelas que não grudam), doure ambos os lados do queijo de cabra levemente empanado na maizena ou farinha, a intenção é que ele fique com uma capa crocante e que seu interior fique cremoso. Ponha o queijo no centro da salada, regue com o molho, ponha sal a gosto e delicie-se.

122 visualizações1 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page