Esse post eu fiz pra guardar
- Mônica Cyríaco
- 28 de out. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 4 de jan.

Acordo com a notícia da morte do poeta e inicio meu ritual de despedida: vou aos livros, releio poemas , torno a me emocionar, vou às canções. Continuo meu ritual, agora quero imagens, conversas, quero vê-lo vivo. Encontro a última entrevista feita em 2024 , exibida no fim de setembro. É sobre as canções feitas em parceria com a irmã , o apresentador pede que ele escolha uma canção favorita e ele escolhe Virgem. Amo essa música e me animo. Logo de cara, a gente já recebe uma pancada estoica:
As coisas não precisam de você/ quem disse que eu tinha que precisar?
Então o poeta vai discorrendo sobre a canção, sobre as menções aos Dois Irmãos – nome do morro, e ao o Hotel Marina, referências à irmã para quem a música era feita; sobre a expressão os inocentes do Leblon _ que inicialmente viera da boca de seu pai referindo-se a Cícero e seu irmão e que, só mais tarde, fora encontrada por ele no poema de Drummond.
A canção de amor desfeito é também uma canção de amor ao Rio. A cidade está ali como interlocutora da voz que anuncia a busca por outros olhos e armadilhas. E por que o título Virgem? Ah, isso eu não lembro, ele responde. E eu digo que sei (Marina Lima é virginiana), mas isso não importa.
Me sinto invadida pelos meus 20 anos, me dá vontade de ouvir aquela playlist. Não por melancolia, não sinto saudades, não desejo voltar no tempo, não acho que antigamente era melhor, nada disso me é comum.
Mas fiquei pensando naquela geração de jovens da minha idade fazendo músicas que falavam diretamente comigo sobre a vida, a sexualidade, a liberdade. Uma geração que inventou um Circo Voador para ter seu próprio espaço, que queria reunir a Zona Norte à Zona Sul, que celebrou a potência de seus corpos com uma nova linguagem amorosa, lúdica, bela. Aquele mundo velho de ditaduras e de violência tinha ficado pra trás no início dos anos 80 e havia no ar uma certa urgência de reinventar tudo. A gente não queria só comida, queria democracia, bebida, diversão e arte. A polícia devia ser só pra quem precisasse dela, a gente queria a moto e o mar, o balanço da Beth e ver o dia nascer feliz. A gente queria tirar a bermuda dos garotos e encontrar a fórmula do amor, queria mentiras sinceras. A gente queria tanta coisa...
Aquelas canções, aquelas atitudes forjaram em mim uma educação sentimental, hoje eu percebo claramente. Não, não é saudade, tudo está em mim, tudo ainda está aqui.
A geração anterior já estava no Olimpo, cada um ocupando seu lugar naquela mesa oval: Gil, Caetano, Chico Buarque, Rita, Milton. Mas até os deuses desceram do monte curiosos para ver o que estava acontecendo ali no Arpoador. E fizeram parcerias, principalmente com Herbert Vianna e Cazuza, os maiores letristas dessa geração.
E, voltando ao início do meu texto, não posso deixar de pensar nas inúmeras canções , frutos da parceria que reuniu as duas gerações presentes nessas memórias , a do poeta Antônio Cícero ( da mesma geração dos deuses que coloquei no Olimpo) e a da sua irmã Marina Lima, 10 anos mais nova : Fullgás, Veneno, Charme do mundo, Virgem, Transas de amor, entre tantas outras canções que me mostraram, naquele momento, em que lugar do mundo eu queria estar.
Escrevo para guardar
Guardar bem aquela cidade cheirando à maresia, lambuzada de rayito de sol, guardar o som de guitarras à tarde e do samba à noite, do sorriso leve e olhar de desejo. Guardar bem aquela juventude que se chamava liberdade. Éramos ( somos) com certeza os últimos românticos. Guardar o poeta que saiu à francesa da vida.
No final dos anos 80 a Aids chegou, o muro caiu, os 20 anos se foram, o pragmatismo nosso de cada dia começou nos encaretar e, quem diria, hoje, 40 anos depois, há quem ainda tente colar os tais caquinhos do velho mundo. Mas não vai rolar, quebrou, não tem mais jeito.
Dica de antídoto: põe pra tocar a sua playlist!
Ainda celebro o instante, ainda guardo a educação sentimental que recebi dançando no espelho e prometi acreditar na utopia que me diz que se você me abre seus braços a gente pode fazer um país. Ainda me movo, ainda tenho fome de comida, diversão, balé, ainda tenho tempo pra cantar, ainda é cedo, cedo cedo.
OBS: Eu disse que não sinto saudades? Mentira. Ando sentindo saudades de ter utopia. Mas então ouço uma voz que me diz As coisas não precisam de você...
Mais Antônio Cícero aqui :
Minha querida amiga, esse texto de despedida me bateu com mais emoção do que eu imaginava. Embora em geral eu me sinta mais impregnado pela geração do Olimpo do que pela geração Coca-Cola, Antônio Cícero + Marina me dizem muito de um vento batendo na cara e uma sensação (falsa?) de que as trevas estavam ficando pra trás. A gente quer a vida como a vida quer, mas também é preciso - ainda - estar atento e forte. E esse seu ritual de despedida me ajuda a lembrar disso.