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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Granada, a bela. Tudo ali se voltava pra ela.

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Granada é o destino final da Espanha Andaluza, tanto para mim, como viajante, quanto historicamente, já que os cristãos ainda levaram mais de 240 anos entre sair de Sevilha e entrar vitoriosos em Granada. Aqui se encerra o processo de cristianização da Andaluzia, sob muita morte, intolerância e perseguição.

O processo foi tão questionável, que Cervantes, num ato simbólico e muito subversivo, põe D. Quixote, no fim de seu romance, entregando a autoria da maior obra-prima da literatura espanhola a um mouro, Cide Hamete Benegeli. Pra quem não lembra, no romance D.Quixote temos um esquema em que há um autor mouro que escreve as aventuras de Quixote, um tradutor do árabe para o castelhano e um narrador cristão que comenta /critica as edições do tradutor e escreve a versão final do livro que hoje conhecemos. Nesse jogo discursivo, a manipulação das camadas narrativas acontecem a ponto de não sabermos quem escreve o quê, nem a quem pertence o texto original, poderíamos mesmo pensar que essa história incrível, irônica, crítica e bem melancólica em seu final poderia muito bem ser a história da Espanha. Em seu delírio, Quixote mergulha num saudosismo anacrônico da Espanha medieval e vira um cavaleiro andante, que representa o passado deslocado, revive metaforicamente esse passado na cavalaria ( que une fé e poder), no feudo, há promessa de uma ilha a Sancho em troca de sua fidelidade e na postura anticientífica, exemplificada na narrativa pelo bálsamo milagroso que curaria todas as doenças. É como se na reescritura do livro do mouro, Cervantes pudesse , ao narrar a morte de Quixote, falar da morte do sonho de grandeza imperial na Espanha do séc.XVII, repousado sobre um substrato árabe. Não poderia sair da Andaluzia sem falar de Cervantes, sua melhor tradução.


Granada, tudo igual, mas diferente,

No nome da cidade. Você pensa em pedra, bomba, mas significa uma fruta. Essa,

que no Brasil conhecemos como romã. Minha primeira surpresa.


Nas delicadezas do dia a dia. Como no café da manhã, numa loja de produtos orgânicos, em que recebi esse envelope de açúcar fofo, embora não se possa garantir que a autoria seja mesmo de Cecília Meireles.











Nas inúmeras e diferentes portas que convidam nosso olhar a entrar.


Granada também é igual nos hoje polêmicos monumentos oficiais que narram a história dos vencedores, a história oficial que geralmente elimina discordâncias e resistências. Não é à toa que na Praça de Isabel, a Católica, estão reunidas as duas personagens onipresentes na Andaluzia, Isabel e Colombo, e onde reencontrei, com seus nomes gravados em bronze ao redor da base do monumento, todas as personagens da série Isabel, a rainha de Castela.




Na maravilhosa e viciante cerveja Alhambra, que trago pra sempre na memória gustativa e na gastronomia do mercado, onde provamos um solomillo de ternera escolhido e feito ali mesmo.







São tantas coisas iguais, mas diferentes... Mas o que nos trouxe até aqui foi Alhambra, a última cidade moura da Península Ibérica , lugar dos reinos Zirida e Nasrida, povos que permaneceram ali por quase 800 anos. E sua vizinhança, o bairro mouro do Albaícin, com suas ruas labirínticas, suas casas de paredes caiadas e decoradas com vasos de flores na fachada, seus pátios, suas fontes, ambos Patrimônios da Humanidade desde 1984.

Como li numa placa na cidade :


Dale limosna, mujer, que no hay en la vida nada como la pena de ser ciego en Granada Francisco de Icaza


E na internet encontrei essa citação , não posso garantir a autoria, mas concordo:


Todo curioso viajero guarda a Granada en sú corazon, aún sin haberla visitado Shakespeare






O Albaicín


Ao fundo, o mirador do Albaicín, foto tirada de uma varanda de Alhambra, que está exatamente em frente ao bairro mouro.


É o bairro mouro de Granada, localizado no topo de uma colina oposta à Alhambra, mas fora de seus muros . Uma das hipóteses para o nome do bairro é que ele tenha sido formado por muçulmanos que chegaram de Baeza, após a reconquista cristã daquela região (bayyasin, habitantes de Baeza). Durante o auge da ocupação árabe, chegou a ter 26 mesquitas e 60 mil habitantes. É o bairro de ruas labirínticas, casinhas brancas e pátios ajardinados, o pôr-do-sol mais concorrido da cidade e a vista mais deslumbrante para Alhambra.

Começamos nosso tour a pé com a empresa Follow me Granada, na qual me inscrevi para a visita no dia anterior, por email. O esquema foi o mesmo de Sevilha, no fim da visitação você dá ao guia o valor que acha justo. A subida para o bairro é íngreme, cheia de vielas e escadas, mas subir a pé com um guia contando as histórias de cada cantinho não cansa, acreditem!

Passamos pelas cármenes ( do árabe Karm, que significa quinta, propriedade rural fora dos muros da cidade) e que hoje, dizem, valem uma fortuna,passamos pelas fachadas pitorescas do bairro que chamam a gente para a fotografia, encontramos vestígios de mais de 1000 anos da Granada muçulmana nas muralhas antigas, passamos por diversos aljibes pelo caminho, entramos pela Puerta de las pesas no centro histórico do bairro para chegar ao mirador, que fica na praça em frente à igreja de San Nicolás. A experiência se complementa com os artistas de flamenco tocando e cantando, todos esperando pelo pôr do sol.

O Mirador de San Nicolás é destino final de quem quer ver a paisagem espetacular da Alhambra em modo panorâmico, com a Sierra Nevada por trás da cidade árabe.

Juro que não dá vontade de sair dali. Descemos passando pelas teterias, casas de chá árabes, pelo El Bañuelo ( os banhos árabes mais antigos da Península, onde não pude entrar por já estar tarde) e paramos pertinho do hotel para beber uma Alhambra geladinha , porque ninguém é de ferro.

Obs: É possível subir ao mirador de ônibus e depois descer a pé.

Se quiser passear pelo Albaicín, encontrei esse vídeo do site Espanha Total. O vídeo está muito completo, voltei no tempo com eles . https://www.youtube.com/watch?v=GVv-g04R468


A alhambra


É uma cidade palaciana formada por três zonas: moradia, onde ficam os palácios nazaríes, uma zona defensiva, a Alcazaba ( fortaleza) e uma zona de ócio, o Generalife, palácio de lazer, jardins e hortas. A Alhambra é assim chamada devido à sua cor vermelha ( qa'lat al-Hamra') e está localizada no alto da colina chamada de Al-Sabika, de frente para o bairro de Albaicín e à margem esquerda do rio Darro, numa posição estratégica que lhe permitia a vista de toda a região de Granada. Embora os primeiros muçulmanos vivessem no Albaicín, só no século XIII o primeiro monarca nazarí fixa residência na cidade palaciana e, a partir de então, Alhambra vive seu momento de maior esplendor. Alhambra é impressionante, porque o monumento está quase intacto, preservadíssimo de modificações . De 1333 a 1391 foram construídas suas principais edificações e depois o conjunto sofre uma intervenção, feita por Carlos V, neto dos reis católicos, quando resolve fazer ali seu palácio. O monumento ficou abandonado durante dois séculos e só em fins do século XIX obras de restauração e conservação passam a ser feitas. A visitação deve ser marcada com pelo menos três meses de antecedência, já que é um dos monumentos mais visitados da Espanha, o número de visitantes é limitado e agora, pós-pandemia, tenho certeza de que esse prazo de antecedência irá aumentar. A compra é feita pelo site e é necessário marcar hora tanto pra entrar no complexo, quanto pra visitar os palácios árabes, por isso deixamos duas horas de intervalo entre esses dois horários, com a visitação dos palácios árabes pra última parte, pra poder aproveitar bem todos os detalhes. Impossível selecionar fotos que compreendam toda a beleza do lugar. Vou tentar separar por ambientes do conjunto palaciano.

1- A Alcazaba ( fortaleza), com a porta do vinho, que ligava a fortaleza aos palácios.

2- Os palácios e seus (en )cantos. Os palácios árabes:

O palácio renascentista de Carlos V, inacabado, que hoje abriga o Museu de Belas Artes de Granada

3- Generalife, o lugar do ócio e seus jardins :

Alhambra é escandalosamente linda e Granada, que foi o grande objetivo da vida de Isabel de Castela, acaba um pouquinho ofuscada por essa beleza. Os restos mortais dos reis católicos estão sepultados na Catedral da cidade. Tudo é narrativa. Eu acho que foi Granada que me conquistou.

visite o site oficial : https://www.alhambra-patronato.es/


( Um parênteses pra falar da série que me serviu de guia até aqui.)

Qualquer monumento histórico, sejam eles estátuas, museus ou memoriais merecem que nos perguntemos, enquanto os miramos : Quando foi feito/colocado ali? Por quem foi colocado? Que narrativas ele reforça? Quais ele silencia?


A série isabel, a rainha de Castela teve três temporadas que aconteceram entre 2012 e 2014, exibidas toda 2a feira em horário nobre na TV aberta espanhola, a RTVE , propondo-se a contar uma história romanceada sobre a unificação da Espanha. E meteu a mão num vespeiro, sim senhor.

Embora a produção tenha sido bastante ambiciosa e muito bem sucedida, se medida pelos níveis de audiência e de prêmios nacionais e internacionais que conquistou, suscitou um grande debate sobre o revisionismo histórico, ora com acusações de ser de direita, ora com questionamentos de linearidade e simplificação sobre a questão das autonomias espanholas, principalmente aquelas ligadas a Fernando de Aragão ( Aragão, Valência, Mallorca e Barcelona) que nunca se submeteram completamente à centralização narrada pela série televisiva.

Segundo os produtores, essa foi uma das maiores dificuldades, falar da questão histórica com distanciamento temporal, sem romantizar e sem falsear os fatos. A questão é que, por haver no papel da rainha uma atriz muito carismática, Michelle Jenner, e de o casal real ter dado uma boa química (o rei foi interpretado por Rodolfo Sancho) houve uma tendência de os espectadores se identificarem demais com a rainha, embora os dramas, as cooptações políticas e o fanatismo religioso de Isabel tenham sido muitas vezes colocados na tela. Segundo os roteiristas, não houve nenhuma tentativa de colocá-la como feminista ou de esposa apaixonada, ela foi mostrada como uma rainha "pela graça de Deus", como os soberanos daquele tempo e que, embora tenham trabalhado com historiadores e bibliografia farta do período, deixaram claro que escreviam para televisão, com consciência clara a respeito do suporte e do público a que se destinava a série. Está tudo ali: a ambição de Isabel, a tomada da coroa de seu irmão Henrique, os acordos e traições da corte, seu casamento inicialmente por interesse, sua crescente adesão ao catolicismo, suas perdas familiares, sua intolerância religiosa , o financiamento das viagens de Colombo até a batalha final , por Granada e por sua própria vida ( ela fica doente e morre em 1504), tudo temperado com muita ação , belos cenários e figurino.

As críticas mais contundentes vieram da Catalunha e de Aragão ( antigos reinos de Fernando), que sempre questionaram esse centralismo de Castela e se viram pouco representadas ali, denunciando que a série mascarou o uso da inquisição como instrumento político dos reis para controlar inúmeras rebeliões e o silêncio sobre a resistência dessas autonomias, o que atualizou uma questão nacional mal resolvida, a da independência da Catalunha, que hoje monopoliza a política na Espanha. Os produtores responderam a isso dizendo que o nome da série já deixava claro qual história queriam contar.

O outro lado da moeda veio com o partido de extrema-direita, Vox, que também tentou usar o nacionalismo de Isabel para manipular os espanhóis em torno de temas como patriotismo, xenofobia, intolerância religiosa, e discurso anti-imigração, utilizando até um capítulo da série para propaganda política, ou seja, a mesma manipulação que o ditador Franco fez, no início do século XX.( para essa questão sugiro o excelente filme A rainha da Espanha, com Penélope Cruz como protagonista de um filme sobre Isabel que seria rodado na Espanha de Franco e financiado pelo ditador).

Diante de toda esses questionamentos, chamei o granadino ilustre Frederico Garcia Lorca pra conversa e busquei o lindo texto Semana Santa em Granada , de onde retirei o trecho abaixo:

O viajante desavisado encontrará com a incrível variação de formas, paisagem, luz e cheiros a sensação de que Granada é a capital de um reino com sua própria arte e literatura, e encontrará uma curiosa mistura de Granada judaica e Granada moura, aparentemente fundidos pelo cristianismo, vivos e insuportáveis em sua própria ignorância.


O mundo mudou. Não se revive (n)o passado, o que podemos fazer é revisitá-lo, observar seus ganhos e perdas, fazer algumas reparações históricas e atentar para os discursos silenciados. Deixo aqui um excelente material de apoio didático com infográficos criados pelo site da série , olha, dá um aulão de Idade Média na Península, acreditem!







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