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Precisamos falar sobre Idade Média!

  • Foto do escritor: Mônica Cyríaco
    Mônica Cyríaco
  • 14 de jan. de 2020
  • 18 min de leitura

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Um casamento se prepara no quintal da cabana do camponês Bernat Estanyol. Ele está muito animado, trabalhou o mês inteiro em suas terras e nas do senhor, para que pudesse comemorar a data servindo comida e bebida a seus convidados. Francesca está linda. O senhor feudal, depois de sair de uma caçada com seus cavaleiros, chega à festa e reivindica seu direito de spoli violenta*, ou seja, gozar da noiva na 1a noite, em troca da licença que lhe concedia para se casar. Bernat não pode recusar. Francesca muito menos. Assim começa o livro A catedral do mar, de Ildefonso Falcones, que conta uma história incrível e muito bem escrita sobre a Catalunha do século XIV e que virou série do mesmo nome na Netflix.


* embora haja controvérsias quanto à existência desse direito, há um documento em que o Rei Fernando promulga uma sentença na qual proíbe esse costume. Só se proíbe o que é permitido, não é mesmo? O trecho relativo a essa proibição está no último parágrafo da p.5 desse documento que pode ser consultado no link abaixo. https://www.guillermoperezsarrion.es/files/2011/07/1486SentenciaArbitralGuadalupe.pdf

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Em tempos de meias-verdades, a história tem sofrido muitas agressões. A última que me chamou a atenção foi um certo revival de informações sobre a Idade Média. Parece que há um grupo por aí que faz uma releitura do período medieval como se fosse uma era de ouro, a consolidação do Cristianismo como religião predominante e , por consequência, o atributo de verdade à afirmação de que "precisamos voltar aos valores medievais" . E há de tudo: discussão sobre terra plana, tentativa de retorno à associação entre Igreja e Estado, Cruzadas, islamofobia, popularização dos cavaleiros templários, caça às bruxas ( feministas são demonizadas ) e até mesmo influenciadores "falando" latim e popularizando o Deus Vult. Mas o tiro de misericórdia , pra mim, foi ver um assessor da presidência da república vestido de cavaleiro templário se preparando para uma CPI das Fake News! Também descobri que nosso embaixador se auto-denomina templário e um outro assessor da presidência um jacobino. Mas não li nada sobre a servidão, sobre a injusta ( e nada santa) Inquisição, sobre a absoluta imobilidade social, sobre a condenação de mulheres como "saco de excrementos" ou sobre a submissão a um senhor que detinha o poder de condenar, expulsar, violar. Também nada ouvi sobre intolerância religiosa, mas desconfio que sei o porquê.


Professores, acho que chegou a hora de trabalharmos bem direitinho o assunto Idade Média, não?



CONTEXTUALIZAÇÃO


Sabemos o quanto é difícil pensar historicamente a respeito de um período longo e diverso geograficamente , como o que se convencionou chamar de Idade Média. O que se sabe é que foi um período fundamentado nos valores dependência e subordinação, que aparecem na economia , na religião e nas relações sociais. O recorte histórico-geográfico aqui será o estudo da Idade Média peninsular, futuros territórios de Portugal e Espanha, já que para o estudante brasileiro faz mais sentido estudar a formação desses Estados e as heranças culturais ibéricas na cultura das Américas, por exemplo.


A Península Ibérica é o lugar da coexistência étnico-religiosa entre cristãos , muçulmanos e judeus por 700 anos, o que dá à sociedade uma particularidade interessante e diferente de outras regiões europeias. Essa coexistência foi choque e simbiose, anulação e permanência. Se hoje somos cristãos, podemos encontrar nas culturas portuguesa espanhola a permanência da herança árabe nas festas, na dança, na música, na arquitetura, na gastronomia, na ciência, na arte , no gosto decorativo. Pouco se fala da herança cultural dessa época na cultura nordestina, por exemplo.


No entanto, as imagens ligadas ao período medieval dos nossos jovens surgem das informações recicladas da indústria cultural. O cinema, as séries de TV e os games de ação focam na guerra e no heroísmo, muitas vezes baseados em uma idade média do Sacro Império romano-germânico ou do Reino Franco, cujo herói é Carlos Magno. No Brasil, muitos dos livros didáticos, por muito tempo, seguiram manuais de história franceses que nada tinham a ver com a Idade Média na Península Ibérica.


Portanto, para iniciarmos um estudo desse período, minha sugestão é , em primeiro lugar, definir qual Idade Média queremos abordar. E, definido o recorte, trabalhar com nosso aluno quais representações desse período eles têm. Depois, desconstruir os clichês e reconstruir saberes a partir das obras de arte produzidas no período.


SEQUÊNCIA DIDÁTICA

público alvo : 1a série EM

conteúdo: Idade Média na Península Ibérica/ Arte Medieval/ Trovadorismo: Cantigas trovadorescas / Humanismo : O auto da Barca do Inferno

disciplinas envolvidas : História/ Literatura/ Filosofia/ Sociologia


Etapas do projeto:


1ª aula. Conversa inicial e verificação do conhecimento prévio dos alunos.

1.1 Trabalhe com a técnica da tempestade mental ou brainstorming . Anote as ideias surgidas nesse primeiro momento, para poder compará-las à conclusão do estudo final.

1.2 Projete o pequeno vídeo de 9m:37s " As ricas horas do Duque de Berry". Deixo a tradução dos slides num documento no fim desse post.






1.3 É importante esclarecer para os alunos que esses slides foram retirados de parte de um livro de horas, tipo de texto muito comum na Idade Média. https://www.wdl.org/pt/item/354/

Por absoluta falta de livros de horas escritos na Península Ibérica ( pesquisei e não os encontrei ) reproduzi trechos desse aqui, escrito no período de Carlos Magno, Rei dos Francos, para o Duque de Berry. Creio que para uma primeira abordagem sobre o período em questão, o lugar fará pouca diferença para que alcancemos nossos objetivos. Esclarecimentos dados, podemos passar às perguntas:

Qual a função do livro de horas? Que personagens aparecem nos slides? Observe os cenários. Onde acontecem as ações? Que tipo de relações sociais você conseguiu perceber nas imagens? Que classes sociais estão presentes ? O título As ricas horas do Duque de Berry apresenta o adjetivo ricas. Que sentidos esse adjetivo traz para o contexto do livro?


OBS: a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro lançou um catálogo dos livros de horas existentes em seu acervo. São nove raríssimos livros trazidos para o Brasil em 1808 , por D. João VI.



2ª aula O QUE NOS DIZEM AS OBRAS?

A turma deve ser dividida em grupos. Cada grupo vai receber um conjunto de obras, analisá-las sob orientação do professor e criar um pequeno relatório com as conclusões dos participantes. ( esse material pode ser impresso em A4 ou enviado sob a forma de arquivo de imagens para os dispositivos eletrônicos à disposição do aluno)


2.1 Observe atentamente as imagens a seguir. Todas são imagens de obras produzidas pelo homem medieval. O que chama sua atenção nelas? Há algo em comum entre as imagens? Observe os temas, materiais utilizados, instrumentos e ritmos, etc. Que assuntos parecem relevantes pra o homem medieval? A partir do material que seu grupo analisou, como definiriam essa sociedade ? 30 min.



2.2 O grupo deve definir um relator logo no início da atividade. O professor deve orientar os grupos, chamando atenção para detalhes das obras, sem dar respostas.



respostas esperadas : são edifícios de pedra, parecem ter objetivo de defesa, amuralhados, altos, quase não se distinguem as igrejas dos castelos, quase não se distinguem construções árabes e cristãs. O professor pode explorar semelhança entre templos e castelos para mostrar a interseção entre guerra, religião e arquitetura.

Fonte das imagens :


GRUPO 2

ILUMINURAS FEITAS POR COPISTAS EM MANUSCRITOS MEDIEVAIS


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Amor Cortês. Cancioneiro da Ajuda, séc XIII
Mulheres espectadoras de uma cena de batalha às portas de um castelo.
Códex Manesse, séc. XI















Cristãos invadem um bairro judeu para vingar uma ofensa a Cristo.
Cristãos entrando na juderia.Cantigas de S.M.,séc XIII

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Frade provando cerveja, séc XIII
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artesão de couro, Livros de Nuremberg,séc. XV
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Damas cristãs jogando xadrez

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mulheres mouras jogando xadrez. Livro de jogos de Afonso X, séc XIII.
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Feira medieval. Livro do Governo de Reis e Príncipes, que Gilles de Roma envia a Felipe, o Belo. séc.XIV

resposta esperada: as iluminuras mostram a representação de alguns grupos da sociedade medieval: cavaleiros, frade, nobres, judeus, muçulmanos, camponeses, mulheres, artesãos e comerciantes. Mostram também algumas atividades comuns, como o comércio, a diversão, as guerras, algumas atividades dos mosteiros, entre outras que podem ser ampliadas em pesquisas sobre iluminuras medievais.


GRUPO 3

CANTIGAS TROVADORESCAS

Ouvir atentamente as cantigas abaixo. A primeira, uma Cantiga de louvor, retirada do Cancioneiro de Santa Maria, de Afonso X. A segunda, uma Cantiga de Amigo , de Martin Codax. Após a audição, o grupo poderá relatar suas impressões a respeito do tema, instrumentos e ritmos percebidos durante a audição.




resposta esperada: a primeira cantiga, de louvor ( que poderia também ser de amor) , parece um cântico religioso.As vozes são masculinas. As palavras identificadas são : rosa, pecados, amores, flor, dona. Há refrão. Instrumentos utilizados : flauta, teclado, cordas, carrilhão, tambor, triângulo...

A segunda cantiga, de amigo, parece mais alegre, há vozes femininas, é mais repetitiva, as palavras identificadas são: meu amigo, amar, ondas, meu amado, levado. Os instrumentos utilizados : flauta, pandeiro, tambor... (lembra ritmos árabes ou ciganos, mas provavelmente nossos alunos não chegarão a essa conclusão , por não terem experiência com esses ritmos)


Um desdobramento importante dessa atividade será a pesquisa de instrumentos musicais medievais e seus sons, deixo aqui uma sugestão de um vídeo de 9 min. , bem interessante e didático: https://www.youtube.com/watch?v=GzkqG8gKJos


2.3 SISTEMATIZANDO

Organização dos dos relatos dos alunos.


AULA 3

APROFUNDAMENTO

A partir do que os alunos concluíram, chegou a hora de o professor procurar fazer uma sistematização mais aprofundada do que foi observado.


POR DETRÁS DAS MURALHAS

A arquitetura medieval presente nas igrejas, nos castelos e nas cidades amuralhadas demonstra uma sociedade que se preocupa com a defesa do território. Isso é muito evidente, já que a Península Ibérica, a partir da queda do Império Romano do Ocidente passa a sofrer invasões de povos chamados de bárbaros, como os godos e visigodos, tribos do Norte da Europa.

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Mais tarde também é invadida por muçulmanos, que entram pelo estreito de Gibraltar, ocupam o sul de Portugal e Espanha e fundam o reino de Al-Andalus, hoje Andaluzia, ali permanecendo por 700 anos. Os árabes deixam marcas arquitetônicas em todas essas cidades.


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Além da defesa, outra marca importante dessa arquitetura é a religiosidade. A construção de igrejas, mesquitas e sinagogas vai configurar o que se convencionou chamar de sociedade teocêntrica, ou seja, a que tem a devoção a Deus como o centro de todo pensamento. A arquitetura traduz esse teocentrismo na arte empregada nos templos : as igrejas católicas traziam como elementos decorativos esculturas, vitrais, mosaicos e retábulos que contavam a vida dos santos , as gárgulas - elementos decorativos que remetem a pesadelos e maus espíritos, torres sineiras e altares ricamente decorados. Essas imagens são da Catedral de Valência que foi construída sobre uma mesquita, que foi construída sobre uma antiga igreja cristã visigoda, que foi construída sobre um templo romano. Superposição de poderes.

As mesquitas trouxeram do Islã, que se espalhara pela Palestina, Síria, Pérsia, e Império Bizantino os elementos decorativos que traduziam seu modo particular de olhar o sagrado. A arte islâmica tem como princípio recusar o figurativo, considerado uma má imitação do divino. Para alcançar o sublime, os artistas utilizavam-se de figuras geométricas e abstratas , em equilíbrio harmonioso de cores, de arabescos que reproduziam trechos do corão com as palavras de Deus nas paredes do templo, além dos arcos e dos minaretes _ torres altas e finas de onde o muezin chamava os fiéis para as cinco orações diárias, a Salah, com o crente voltado para Meca, sua cidade sagrada.

Já as sinagogas, justamente pelo caráter errante e necessariamente discreto da religião judaica, absorveram estilos arquitetônicos das culturas nas quais se inseriram, sempre mantendo vivas as três funções primordiais do edifício : ser um local de oração, ser um centro de estudos da Torah e do Talmud, livros sagrados, e ser espaço de encontro da comunidade para tomada de decisões que dizem respeito a todos. Essas fotos referem-se à sinagoga de Praga, conhecida como Allambra, de 1868. Nela podemos perceber a intenção de acrescentar ao templo características da arquitetura medieval da Península Ibérica. Essa sinagoga foi escolhida para ilustrar esse tópico, porque não há nenhum registro de sinagoga medieval Ibérica, pois todas foram destruídas naquele período, após a expulsão dos judeus.


O período que se inicia com a ocupação visigoda e termina com a expulsão dos árabes e judeus da Península Ibérica durou 10 séculos e ficou conhecido como Idade Média. ( lembrando que o recorte adotado aqui é a Idade Média nos territórios que hoje são conhecidos como Portugal e Espanha. )


AULA 4

A TERRA, OS SUSERANOS, OS VASSALOS E OS SERVOS

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A economia era de base agrária, como se pode ver tanto no calendário acima, quanto no livro de horas do Duque de Berry, com servos entregues ao trabalho durante todos os dias do ano, mas havia também o comércio nas feiras dos vilarejos. Essa economia de base agrária e estabelecida no modelo de servidão e vassalagem ficou conhecida como feudalismo e não foi uniforme em todos os lugares.

Aqui, um exemplo de um feudo, na Idade Média.


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Os feudos eram grandes propriedades de terra que continham uma grande parte de solo cultivável _ o manso senhorial_ onde tudo o que era produzido e cultivado pelos servos pertenciam ao senhor feudal e uma pequena parte de terras doadas aos servos_ o manso servil. Os bosques, florestas e pântanos eram coletivos, mas os grandes animais só poderiam ser caçados por ordem do senhor. Os senhores, a partir de um pacto de vassalagem, recebiam essas terras de um suserano, que poderia ser um outro nobre senhor ou um rei e em troca ofereciam sua fidelidade e disponibilização de serviços militares em caso de guerra, fazendo com que um vassalo pudesse ser suserano de outro vassalo, ampliando assim essa rede na qual o regime se baseava, reforçando os princípios de proteção, fidelidade e obediência.

Os senhores viviam nos castelos ou casarões de pedra. A casa senhorial abrigava o senhor feudal, sua família e seus empregados diretos. Já os servos viviam em casebres de apenas um cômodo, em vilas com até 60 famílias, próximas a corpos d'água e às lavouras.

Em busca de proteção senhorial e de garantia de subsistência, pois já vimos a necessidade de se defenderem de invasões, muitas pessoas decidiam viver dentro dos feudos amuralhados , sob o regime de servidão e vassalagem. Os servos davam ao senhor parte de seu tempo de trabalho e parte de sua produção agrícola.

A partir do séc. XI as cidades renascem e o comércio entre feudos e cidades sofre um aumento no fluxo de pessoas e produtos .


4.1 A CIDADE MEDIEVAL


No século XIII, as cidades estão renascidas e populosas, muito em função do excedente agrícola, do aumento das transações comerciais e do fluxo migratório. As pessoas que procuravam uma alternativa para sair da servidão dos feudos buscaram novos ofícios nas cidades _ ou burgos, como eram conhecidas. Ali poderiam ser vistos comerciantes, artesãos e pessoas de diferentes vilarejos.

Por não serem servos e não estarem ligados à terra, alguns camponeses que viviam nas vilas podiam circular livremente por feudos e cidades, daí a origem do vocábulo vilão, o que vive na vila, o não-nobre, e por aproximação, os mal-educados, grosseiros, aqueles capazes de uma ação vil ( observe a rejeição e o medo que despertavam os "forasteiros") .

Nas iluminuras podemos ver diferentes cenas cotidianas, com diferentes personagens presentes na cidade, tais como burgueses, artesãos, cavaleiros, frades, sapateiros, além de bairros inteiros de população judia, as juderias.


Um ponto importante na formação da sociedade ibérica é a presença de escravos.Alessandro Stella, em seu estudo sobre a escravidão na Península - Histoire d'esclaves dans la Péninsule Ibérique ( EHSS, 2000, 215p) - aponta que a escravidão atravessa a Europa ao longo da história, e que em todos os espaços se podiam encontrar escravizados eslavos, turcos, russos, tártaros, sarracenos e mouros, principalmente durante a reconquista espanhola. Esse fluxo de escravizados era garantido principalmente por venezianos e genoveses pelo Mediterrâneo e o que os tornava passível de escravidão era frequentemente serem estrangeiros, prisioneiros de guerra, capturados em incursões ao exterior ou em atos de pirataria, no entanto, poderiam se tornar escravizados também aqueles que não pagassem suas dívidas ou que fossem vendidos por familiares em troca delas. Desempenhavam tarefas diversas na agricultura, em minas ou em galés, em zonas urbanas ou rurais.

O Al-Andalus também importava escravos e era ponto de partida desse mercado para o resto do mundo. Os escravizados eram utilizados nos palácios na cozinha, cavalariça e guarda do harém, nesse caso, emasculados , conhecidos como eunucos. No século X há registros de 14.000 escravos de origem eslava em Córdoba, ao mesmo tempo em que meninas sarracenas eram vendidas como escravas no Sul da França.

Na Península Ibérica a escravatura permaneceu desde os romanos, atravessou a Idade Média e alcançou seu auge nos séculos XV e XVI, com a escravização de negros africanos.


AULA 5

COEXISTÊNCIA RELIGIOSA

Aqui cabe abrir uma boa discussão sobre as particularidades existentes na Península que a diferenciam de outros lugares medievais : a coexistência respeitosa e muitas vezes colaborativa das três grandes religiões.

A Península Ibérica conheceu uma certa tolerância entre cristãos , muçulmanos e judeus por um bom tempo, diferente do restante da Europa. Durante o período de domínio dos visigodos, a religião cristã foi decretada a oficial do reino, mas outros grupos religiosos, como os judeus, já habitavam ali há pelo menos 5 séculos a.C. A partir de 711 , a invasão muçulmana traz consigo o Islamismo e sua exuberante cultura, presente em suas construções, música, ciência, medicina, matemática, filosofia ( os árabes foram tradutores ávidos do pensamento científico e filosófico grego) .

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Para se ter uma ideia da importância dessa invasão cultural, a biblioteca da mesquita de Córdoba possuía 400 mil volumes, os cordobenses tinham água encanada e banhos públicos alimentados por aquedutos. Como inicialmente se espalhou por quase toda a Espanha e mais tarde permaneceu por mais de 700 anos na Andaluzia, criou ali um verdadeiro caldeirão cultural, combinando o melhor das três religiões, com influências profundas na cultura europeia que podem ser vistas até hoje na música ( instrumentos musicais e ritmos) na dança ( o flamenco) , na arquitetura ( as casas brancas, os pátios sevilhanos, os mosaicos etc).

O Islamismo também afirmava em suas escrituras que os Povos do Livro , ou dhimmi _ cristãos e judeus_ não podiam ser agredidos e sim protegidos. Não que tivessem plenos direitos, eram uma espécie de cidadãos de segunda classe, pagavam impostos diferenciados, não podiam ter escravos nem armas. Foi exercitando essa tolerância própria do Islamismo que a Andaluzia experimentou uma explosão de avanços culturais e científicos jamais vista.

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Durante o reinado de Afonso VI, com o estabelecimento de uma política de tolerância que seria seguida por seus sucessores, ( 1047-1109), a Espanha árabe experimenta alto nível cultural e tecnológico. A escola de tradutores de Toledo proporcionou traduções que teriam se perdido se dependessem apenas dos cristãos, já que esses não possuíam o vasto conhecimento de línguas e culturas diversas que havia entre os muçulmanos, promotores de intercâmbio entre persas, indianos, chineses, gregos e árabes . Dessa escola saiu a tradução do Cânone da Medicina de Ibn Sina, por exemplo. Sob o reinado de Afonso X ( 1221-1284), o rei sábio, essa escola realizou a tradução de textos da Antiguidade Clássica e do Talmud. No início da ocupação islâmica, houve mesmo uma certa cooperação entre cristãos e muçulmanos, não só nas bibliotecas e scriptorium dentro dos mosteiros, mas até mesmo para resolução de conflitos intestinos, como brigas pelo trono de Afonso VI com seus irmãos, como se pode ver nas batalhas cantadas na gesta de El Cid.

Há um episódio interessante da série da History Conquistadores sobre El Cid, que você pode ver aqui : https://www.youtube.com/watch?v=YiRcG9ey47Q


Já o grupo judaico sempre sofreu mais desconfiança por parte dos cristãos, que dos muçulmanos. Por serem um povo errante, sem pátria fixa, tornaram-se minorias por onde passaram. Não foi o caso da Península, já que ali constituíram a maior população judaica da época, influenciaram a demografia, a etnia, os aspectos culturais e políticos, viviam com relativa tranquilidade, embora pagassem altos impostos por essa "tranquilidade". Chamaram-se sefarditas, os judeus da Sefarad ( Hispânia). Falavam árabe, romanço galego-português, o castelhano e circulavam por todos os grupos sociais, o que sempre despertou suspeição dos outros grupos. Na Península cristã eram considerados traidores, usurários, indignos e, por isso mesmo, a eles foi permitido lidar com juros e empréstimos, cobrança de impostos, penhor, profissões que ajudavam a aumentar-lhes a rejeição. No entanto, também exerciam outras profissões , todas ligadas à experiência citadina, como comerciantes, ourives, alfaiates, cientistas, médicos, entre outras.

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Eram obrigados a viver apartados da comunidade, em aglomerados urbanos conhecidos como juderias bairros fechados, com pelo menos uma sinagoga e um prefeito e eram enterrados fora das muralhas das cidades, portanto, fora do solo sagrado. As juderias sofreram ataques frequentes de cristãos , como se vê nessa iluminura do séc.XIII, em que o pavor da invasão está estampada nos rostos das mulheres judias. Muitos judeus já vinham sofrendo com a perseguição dos cristãos em outros lugares da Europa.

As Cruzadas (séc. XI - XIII ), um movimento militar que tinha como objetivo ocupar territórios de Jerusalém em nome de Cristo contra os infiéis, acirram o rancor antijudaico, já que, para brigar contra os adoradores de Maomé, os cristãos muitas vezes tinham que deixar suas posses pra trás à mercê de judeus (esses não iam pra guerra), outras vezes pedir-lhes dinheiro emprestado , acumulando enormes dívidas em seus retornos. As Cruzadas também participaram ativamente da reabertura do Mediterrâneo para o comércio, além da retomada dos territórios ocupados pelos árabes e já em 1031 recuperam Córdoba e Toledo para os cristãos.

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Como a insegurança aumentando cada vez mais em outras cidades da Europa, muitos judeus mudam-se para o sul da Península, onde ainda havia um certo equilíbrio tolerante entre as religiões. Em 1321 os judeus são expulsos da França, depois de serem acusados de envenenar os poços de água potável. Essa "fake news" se espalha por toda a Europa como uma conspiração de judeus e muçulmanos contra os reinos cristãos. É importante destacar que o Cristianismo também lutava ainda pela hegemonia do discurso dos seguidores de Cristo, perseguindo seitas cristãs não católicas, chamadas de hereges e elegendo um inimigo comum a ser combatido, no caso, os judeus e, posteriormente , os muçulmanos. Há massacres, prisões, perseguições que se intensificam e chegam à Espanha. Em 1383, Portugal retoma Faro dos islâmicos. Em 1478 a Inquisição é autorizada na Espanha e o já fragilizado equilíbrio acabaria definitivamente com a retomada de Granada, em 1492. A expulsão dos árabes da Península e o extermínio de judeus durante o período conhecido como Reconquista marcam o fim da Idade Média na Península Ibérica e a consolidação dos Estados Nacionais de Portugal (1139-1385) e Espanha (1479- 1492).


AULA 6

O CLERO

Ainda sobre as iluminuras do grupo 3 que se referem aos tipos medievais, podemos falar dos frades, padres, ou seja, do Clero, onipresente em todas as camadas sociais. Já vimos que a religião tem o protagonismo na sociedade medieval. As identidades se dão pela religião e pela terra, ainda não existe nenhuma noção de país, nenhuma nacionalidade. A igreja Católica tem um protagonismo crescente durante toda a Idade Média. É ela que define as bases teológicas cristãs, elimina dissidências interpretativas, empreende e realiza a conversão dos pagãos e amplia territórios pelas Cruzadas, reivindicando o direito a Jerusalém, chamada de Terra Santa.

É a partir do séc. IV, com a conversão do imperador romano Constantino ao Cristianismo, que se iniciam as bases de fundação da Igreja Católica ( = universal, ou seja, para todos) Apostólica Romana. Essa igreja sobreviveu à queda do Império Romano e se fortaleceu cada vez mais. O crescimento da Igreja Católica pode ser observado já no século VI, em que começam a surgir as ordens monásticas, representando em seu interior várias correntes políticas dentro do clero. Os monastérios são fortalezas feudais onde monges fazem de tudo : plantam, aram a terra, fazem vinhos e cervejas, estudam copiam textos , traduzem, escrevem, mantêm o conhecimento adquirido e são abertos a todas as classes sociais. Na verdade , pode-se dizer que na Idade Média , uma das poucas possibilidades de um servo obter alguma mobilidade social seria entrando para uma ordem religiosa.

A consolidação do Cristianismo passa pela consolidação da hierarquia da igreja católica, tendo na sua base os padres e frades, que lidam diretamente com as paróquias, ou seja, fazem o trabalho de base, seguidos por bispos, espécie de supervisores dessas paróquias reunidas sob uma província e os arcebispos, que cuidavam das capitais das províncias, todos sob o comando do Papa, autoridade máxima, a quem todos deviam obediência. Por estarmos numa sociedade teocêntrica, como já foi dito, o poder da Igreja transita entre o religioso, o político e o econômico, já que é ela também uma importante proprietária de terras e servos, apoia e derruba senhores, alia-se ao poder político de reis, acusa e persegue hereges e domina o povo pela interpretação conveniente das escrituras.

No fim da Idade Média, com a Inquisição em marcha, o poder da Igreja Católica Apostólica Romana era, muitas vezes , maior que o poder real. No entanto, esse tremendo poder não escapou das criticas de artistas e do povo, como se pode ver nas iluminuras abaixo


AULA 7

AS MULHERES


Das personagens presentes nas iluminuras do grupo 3, ficou faltando falar das mulheres na sociedade medieval. Vimos duas representações de mulheres nas iluminuras, até agora : as mulheres serviçais ( no vídeo do Conde de Berry) e as mulheres nobres.

Sabe-se que as mulheres tiveram papel ativo na Idade Média da Península, mas essa participação é pouco documentada. A maior parte dos documentos referentes à participação feminina está relacionada à Idade Média nos territórios hoje conhecidos como França. Inglaterra, Países Baixos. Em relação à península, é necessário buscar registros de cartórios da época _ contratos de casamento, testamentos, inventários, bulas papais que buscavam "regulamentar" o papel da mulher na sociedade, regulamentos de corporações profissionais de mulheres (guildas- espécie de associação profissional) . Também é possível ter uma ideia de papéis femininos nesse período consultando textos de arte medieval, especialmente as cantigas trovadorescas de amor e de amigo, como veremos adiante.

Nesse período, quase tudo o que se consome no campo ou na cidade é fabricado ou conservado em casa, daí a importância do trabalho feminino. Como pudemos ver no Livro de Horas, as servas realizam quase todas as mesmas tarefas que os homens no campo e dentro de casa são responsáveis pela complicada logística doméstica : prover os recursos, gerir o sustento da família, garantir refeições mínimas, produzir os gêneros de 1ª necessidade como tecidos, sabão e velas, conservar e armazenar adequadamente os alimentos, planejar adequadamente o tempo e os recursos, que deveriam durar até a próxima safra. No caso de mulheres nobres, essas tarefas se ampliariam na coordenação em maior escala dos recursos do castelo e na manutenção da contabilidade, por exemplo.



Na maior parte da península, as mulheres estavam na linha de sucessão política e senhorial, podiam escolher o marido, as casadas gozavam de relativa autonomia, nas cidades estavam presentes em inúmeras profissões, como fiandeiras, padeiras, donas de albergues, copistas, vendedoras, farmacêuticas, parteiras e médicas ( por um grande período, as judias, islâmicas e cristãs partilharam seus conhecimentos de medicina).


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O nascimento de Esaú e Jacob, 1475-80

Na Baixa Idade Média ( XI-XV) as mulheres vão perdendo seu protagonismo e sua independência, à medida que o Cristianismo Católico vai ganhando força. Santo Agostinho foi o primeiro teólogo a associar pecado original e sexo e essa associação demonizou a mulher. A caça às bruxas só não foi intensa na Península Ibérica, porque ali os cristãos tinham um outro inimigo mais declarado: os judeus, que também foram demonizados quando associados à traição de Cristo.

Assim, entre os séculos XII e XIV, numa contundente consolidação da Igreja Católica, a Europa viveu uma explosão de construções de catedrais góticas, a maior parte delas dedicadas à Nossa Senhora, buscando atrair as mulheres para os templos cristãos, ao mesmo tempo em que empreendeu uma verdadeira caça às bruxas em vários lugares, do norte do continente ao sul da França, principalmente às mulheres cátaras, simpatizantes do catarismo, corrente cristã que questionava a hegemonia católica, pregava a pobreza, rejeitava os sacramentos do batismo, da eucaristia e do matrimônio, acreditava em reencarnação, pregava a renúncia aos prazeres mundanos, permitia que mulheres fossem líderes espirituais e tinha Maria Madalena como mais importante que Pedro na história do Cristianismo. Foram massacrados por Cruzados em 1209-1244.

Portanto, pode-se pensar que a proliferação do culto mariano e a construção desses templos góticos, que têm seu exemplo mais conhecido na Catedral de Notre-Dame em honra à Nossa Senhora, reforçaram o modelo de mulher que se queria construir : o de Maria-virgem e o da Virgem-Maria , senhora imaculada e misericordiosa, mãe de Jesus, alijando para sempre a importância da figura da Maria Madalena dos "hereges"cátaros e educando as mulheres para cumprirem seu principal papel na sociedade: a maternidade. Curioso é saber que a maioria das catedrais dedicadas à Virgem foram construídas pelos cavaleiros templários, deixando clara mais uma vez a interseção entre guerra/cavaleiro cruzado e religião/ catedrais de N.Senhora.

Desse modelo de mulher, que une o amor cortês, a vassalagem amorosa, o culto à virgem e o casamento surgem as Cantigas de Amor do Trovadorismo que ao lado das Cantigas de Amigo e suas raízes moçárabes moldarão o papel feminino no fim da Idade Média na Península. No próximo post falarei desses modelos de mulher que aparecem na Arte de Trovar. Vamos conhecer, também, uma obra crítica a essa sociedade medieval no Auto da barca do Inferno, de Gil Vicente e ver propostas de atividades de avaliação.


Fontes:




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