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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Os agoras do nosso tempo e os fins do mundo do último milênio.

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Agora, agora e mais agora, Podcast de Rui Tavares, 2020


A segunda obra de que quero falar é um podcast. Sim, amigos, ouço podcasts, eles me ajudam a fazer uma faxina melhor, a tornar minha comida mais saborosa ou a amenizar o tempo de uma bicicleta ou caminhada. E esse, em especial, foi minha boia de salvação no início da quarentena, naqueles meses iniciais, quando o medo do desconhecido nos aterrorizava, quando víamos imagens do fim do mundo pela primeira vez em rede nacional.

Falo do podcast do historiador e escritor português Rui Tavares, chamado Agora, Agora e mais Agora que se propõe, em 31 episódios, a nos trazer 6 memórias do último milênio, são elas : Fanatismo/ Polarização/ Globalização/ Emancipação/ Ódio/ Escolhas.

Agora, agora e mais agora é um título escolhido a partir de uma história familiar do escritor. Sua bisavó, depois de sofrer um AVC que afetou sua fala nos anos de 1940, passou a repetir a expressão em diferentes entonações (era a única frase que conseguia pronunciar). Ele não conhecera a bisavó, mas o fato inusitado passou a ser parte da tradição oral de sua família. A expressão vira uma espécie de símbolo de ansiedade que experimentamos sempre que nos deparamos em nossas vidas com situações complexas, da perplexidade pela qual somos tomados perante momentos de decisões difíceis.


Nesses episódios, vamos percebendo que a humanidade passou por vários agoras, que o mundo acabou muitas vezes e que a melhor maneira de conhecer esses momentos é perceber como pessoas diferentes responderam diferentemente aos problemas, a crises e a transformações radicais. Para isso, Tavares conta histórias da história a partir de personagens exemplares que viveram e sofreram, cada uma a seu tempo, as consequências dos fins do mundo em suas biografias. Algumas dessas personagens, a que ele denomina de lado B, foram muitas vezes apagadas da História, como o filósofo persa Al-Farabi, o notário florentino Brunetto Latini e Baruch Epinosa, o filósofo fundador da Modernidade.


Ouvi um episódio por dia, como se estivesse economizando as narrativas com medo que se acabassem logo. Após o término de cada um, fazia uma reflexão, voltava às partes que não tinham sido tão bem compreendidas e agradecia por ter encontrado esse Agora. Pude ver que sim, a história é sempre diferente e sempre igual, porque é feita por humanos que partilham o mesmo intelecto, com consciências que transcendem culturas. Que somos regidos pela memória e, principalmente, que não nos desesperemos, que nada é novo, que tudo flui e que a mudança é possível e isso diminuiu minha ansiedade. "Mergulhamos e não mergulhamos no mesmo rio duas vezes, porque somos e não somos os mesmos" nos disse Heráclito. Se foi a peste negra que simbolizou o fim da era medieval e nos possibilitou entrar no Renascimento, se o morticínio das guerras do século XX nos legou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, posso desejar que a nova geração pós-pandêmica que virá poderá levar o mundo a um respeito maior ao meio ambiente, ao combate à desigualdade, enfim, a novas escolhas.


É desnecessário dizer que os 31 episódios são histórias da Europa contadas por um português, o que não me impediu de, ao terminar as histórias do podcast, buscar um diálogo com o pequeno grande livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, ele mesmo um homem que já conheceu alguns finais de mundo desde 1.500, tanto como sobrevivente, quanto pela memória de seus ancestrais. São visões de humanidade diferentes e complementares, mas as duas visões dão a devida importância à memória. Diz Krenak:

Como justificar que somos uma humanidade , se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas nesse mundo maluco que compartilhamos

Apenas como uma breve comparação entre as duas visões de mundo nas duas obras, Rui Tavares, ao falar do tema Emancipação, leva dois episódios para nos colocar lá no início do Liberalismo , falando da filosofia de vida ascética dos Quakers, da filosofia do utilitarismo de Franklin Roosevelt e de como esse utilitarismo foi usado na colonização estadunidense. Dá como exemplo o ideal de educação imposta ao jovem John Stuart Mill, que passou sua infância impossibilitado de brincar, já que isso significaria perder tempo. Sua rotina era estudar grego, latim, fazer traduções. Sua lembrança de herói é o pragmático Robinson Crusoé, verdadeiro protótipo do colono britânico, segundo James Joyce. Stuart Mill foi considerado um importante pensador do Liberalismo do século XIX, embora tenha tido um esgotamento nervoso aos 21 anos. Já Krenak, do outro lado do processo emancipatório, nos acena com outra possibilidade de organização comunitária, fundada no prazer, na dança e no sonho

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido de experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.

Quando a gente não está entendendo nada, a gente procura respostas no passado, nas nossas memórias. Quando a vida fica incompreensível, ouvir e contar histórias é uma forma de se colocar no lugar do outro e ganhar muita sabedoria e compreensão. Foi o que fiz. Segurei nas mãos de Rui Tavares e de Ailton Krenak e segui. Saí dessa experiência com os aromas de figos imaginários (presentes no último capítulo do podcast), das frutas que comemos pela primeira vez lá atrás, na infância e cujo perfume nos leva imediatamente àquele lugar encantado do passado ( muito influenciada pelo meu netinho experimentando o sabor de uma deliciosa bananinha pela primeira vez na vida), mas também com os sons ritmados dos rituais que nos ajudam na experiência mágica de suspender o céu.

Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar /.../ Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial.

Saí dessas obras certa de que é a memória e somente ela que nos faz humanos. E que é preciso cantar, dançar e contar histórias em nosso Agora-Agora do recomeço.


Pra saber mais de Rui Tavares, leia a entrevista dada à BBC Brasil, em dezembro de 2020

Do Krenak, usei a 1ª edição da Cia das Letras, São Paulo, 2019


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