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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Para Caetanear o que há de bom! ( 1 )

Se eu estivesse hoje em sala de aula, a obra de Caetano certamente seria um tema incontornável. O artista acaba de receber uma honraria daquelas de encher de orgulho a cultura do nosso país, riquíssimo da diversidade que se materializa esteticamente na voz do poeta. Segunda-feira, dia 4 de setembro, o Departamento de Filologia Moderna da Universidade de Salamanca, uma das mais antigas do mundo, concedeu a Caetano Veloso o título de Doutor Honoris Causa. Vamos ver rapidamente o significado dessas palavras:

Filologia:

Doutor Honoris Causa:


O Honoris Causa, termo em latim que significa “por causa de honra”, é um título acadêmico concedido a uma pessoa com contribuições notáveis à sociedade em alguma área de atuação, como cultural, político, literário, filantrópico e outros. Qualquer pessoa pode ser agraciada, ainda que ela não tenha diploma universitário. Os títulos não têm valor acadêmico, ou seja, não conferem qualquer tipo de graduação ou qualificação ao agraciado, sendo utilizados para reconhecer e prestigiar o impacto do indivíduo na humanidade

Ao apresentar o artista, o professor de Filosofia Galega e Portuguesa Pedro Serra afirmou que a obra de Caetano proporciona um percurso de elevada tensão linguística e musical: um monumento do poético, da poesia como lugar de carinho, de amor e de amizade. Ele fez do amor pela língua um modo de vida. Ele é um poeta, um filólogo no sentido mais nobre da palavra.


No entanto é uma pena que muitos brasileiros das gerações mais novas ainda não tenham sido apresentados à obra de Caetano e a sala de aula deve fazer esse papel de aproximação entre a obra e o público e dar visibilidade ao prêmio que reconhece essa intensa e extensa criação cultural.


Poderíamos iniciar essa apresentação pelo acontecimento veiculado em todos os sites de notícia e em todas as redes sociais ( incluindo as redes do próprio Caetano Veloso)


O clima de grande emoção na entrega do título se completou com Caetano cantando a belíssima canção Genipapo Absoluto, em que retoma a memória de sua irmã Mabel, poetisa, de seu pai e de sua mãe. Eis a letra:


Como será pois se ardiam fogueiras?

Com olhos de areia quem viu?

Praias, paixões fevereiras

Não dizem o que junhos de fumaça e frio


Onde e quando é genipapo absoluto?

Meu pai, seu tanino, seu mel

Prensa, esperança, sofrer prazeria

Promessa, poesia, Mabel


Cantar é mais do que lembrar

É mais do que ter tido aquilo então

Mais do que viver, do que sonhar

É ter o coração daquilo


Tudo são trechos que escuto: vêm dela

Pois minha mãe é minha voz

Como será que isso era, este som

Que hoje sim, gera sóis, dói em dós


"Aquele que considera" a saudade

Uma mera contraluz que vem

Do que deixou pra trás

Não, esse só desfaz o signo

E a "rosa também"

Veloso, Caetano. Genipapo Absoluto in Estrangeiro, 1989.

O que diz Caetano sobre a canção:

Mas a canção me emociona por outras duas coisas também. Primeiro, o jeito como aparece meu pai: Onde e quando é genipapo absoluto?/Meu pai, seu tanino, seu mel. Eu adoro isso. A letra também fala de prensa, porque meu pai me chamava para ajudá-lo a prensar o genipapo numa prensa de madeira para fazer o licor. Era sempre a mim que ele chamava: Caetano, vamos prensar o genipapo. Eu adorava fazer. E adorava o licor, adoro ainda. Prensar o genipapo com meu pai me deixava todo orgulhoso. Ele tinha certa cumplicidade comigo numas coisinhas assim. E algumas eram cruciais, como essa, espremer o genipapo. Outro dado que me emociona é que essa canção fala de minha identificação com meu pai mas declara, em seguida, que minha mãe é minha voz.

Ouça aqui a canção:

Que bela homenagem aos ancestrais, não? E quanta poesia retirada do cotidiano, da memória, da musicalidade da língua ( tudo são trechos que escuto).


A obra de Caetano é vasta , diversa, camaleônica. São verdadeiros poemas que se vestem de rock, samba, maracatu, bossa nova, funk , demonstram a grande rebeldia estética do autor e conversam com sua eterna juventude ( quem pode negar que Caetano não tem 81 anos?). Sendo assim tão vasta e diversa, escolho duas canções que para mim são exemplos de intensa carpintaria poética para apresentar como possibilidades de leitura/ audição em sala de aula, são elas O Quereres e Outras Palavras.


Nesse post minha sugestão é trabalhar Caetano em diálogo com Luís de Camões

O Quereres ou Um querer mais que bem querer.

Onde queres revólver, sou coqueiro E onde queres dinheiro, sou paixão Onde queres descanso, sou desejo E onde sou só desejo, queres não E onde não queres nada, nada falta E onde voas bem alta, eu sou o chão E onde pisas o chão, minha alma salta E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco E onde queres romântico, burguês Onde queres Leblon, sou Pernambuco E onde queres eunuco, garanhão Onde queres o sim e o não, talvez E onde vês, eu não vislumbro razão Onde queres o lobo, eu sou o irmão E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! Bruta flor do querer Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito E onde queres ternura, eu sou tesão Onde queres o livre, decassílabo E onde buscas o anjo, sou mulher Onde queres prazer, sou o que dói E onde queres tortura, mansidão Onde queres um lar, revolução E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor Construir-nos dulcíssima prisão Encontrar a mais justa adequação Tudo métrica e rima e nunca a dor Mas a vida é real e de viés E vê só que cilada o amor me armou Eu te quero (e não queres) como sou Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo E onde queres romance, rock'n roll Onde queres a lua, eu sou o sol E onde a pura natura, o inseticídio Onde queres mistério, eu sou a luz E onde queres um canto, o mundo inteiro Onde queres quaresma, Fevereiro E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim Do que em mim é de mim tão desigual Faz-me querer-te bem, querer-te mal Bem a ti, mal ao quereres assim Infinitivamente pessoal E eu querendo querer-te sem ter fim E, querendo-te, aprender o total Do querer que há e do que não há em mim

VELOSO, Caetano. O Quereres in Velô, 1984


Valendo-se da particularidade linguística do Português_ o Infinitivo flexionado_ Caetano constrói uma das mais bonitas canções de seu repertório.


Construída com versos decassílabos em seis oitavas e um refrão em redondilha maior ( a mesma estrutura utilizada por Camões em Os Lusíadas), repleta de rimas encadeadas, internas e externas e associações surpreendentes _ como maluco/Pernambuco ou fliper-vídeo/inseticídio, o texto se vale da forma equilibrada, simétrica e sem dissonâncias para falar do quão paradoxal e antitética é a vida real em que o eu e o outro estão ligados pelo desejo desencontrado.

Onde queres revólver, sou coqueiro E onde queres dinheiro, sou paixão Onde queres descanso, sou desejo E onde sou só desejo, queres não

O tema é antigo, Camões já nos falava do "querer mais que bem querer", mas Caetano atualiza o tema utilizando uma proliferação de imagens desarmônicas, associando elementos díspares e distanciando eu e tu a partir da substantivação do querer do outro : O quereres. Dessa construção gramatical surgem possibilidades semânticas , como quereres (tu ; infinitivo flexionado), quereres ( plural de querer) e o quereres ( = tua vontade).

A estrutura semântica apresenta estrofes em que ocorre a descrição do problema do desencontro amoroso

Onde queres... / Sou ...

e outras em que predomina a expressão

Eu queria ...

enfatizando o querer do sujeito poético. Entre essas partes, o refrão , lamento resignado expresso pela interjeição e pela imagem belíssima da expressão bruta flor _ aquela ferida que dói e não se sente.

Ah! Bruta flor do querer Ah! Bruta flor, bruta flor

O que queres não é o que sou e o que sou pode mudar , é o que observamos no primeiro verso da canção

Onde queres revólver sou coqueiro

e que após inúmeras voltas, retorna estruturalmente para o verso

Onde queres coqueiro sou obus,

desfazendo a primeira afirmação e dando ao texto um caráter circular, de um sentimento que é tão contrário a si mesmo. Aliás, Caetano nesse texto roça a língua de Luís de Camões deliberadamente. Além dos exemplos de forma e conteúdo já descritos aqui, temos também o desejo de construir dulcíssima prisão _ em Camões é querer estar preso por vontade_ e a utilização dos Infinitivos substantivados que buscam definir o sentimento amoroso , como em um não querer mais que bem querer .


A beleza , na minha opinião, é que Caetano nesse diálogo com o poeta português retira do sentimento amoroso a visão platônica e ideal e põe nesse lugar o desejo, o querer, a vontade acima da impossibilidade cotidiana de transcender as contradições. Para isso vale-se barrocamente dos jogos de opostos, da justaposição de contrários, quebra a linearidade para refletir a tensão do mundo dissonante. A gente curte a música, canta, dança , mas tropeça em uma ou outra sintaxe empolada , numa palavra inusual que às vezes enevoa o nosso entendimento. Não à toa, ele é estudado como um compositor neobarroco, característica que ele mesmo se atribui.


Ao trocar a visão platônica de amor pelo querer, Caetano atualiza Camões e o desconcerto do nosso mundo e evidencia a impossibilidade de satisfazer o desejo e o fato de que busco no outro o que em mim falta. Eu te quero (e não queres) como sou/ Não te quero (e não queres) como és - observem a genialidade dos parênteses!


Como resolver? Na última estrofe a canção apresenta uma ( breve) saída : a disjunção entre a pessoa amada e seus quereres, (quero) bem a ti e mal ao quereres assim.

O sensacional nessa estrofe que fecha a canção é a utilização do cultismo ( jogo de palavras) e conceptismo ( jogo de ideias) barrocos, propondo a fusão dos opostos, numa espécie de alquimia dos contrários. O diferente torna-se idêntico, o outro torna-se o mesmo, como a imagem refletida no espelho, que contém em si o idêntico e o diferente, a igualdade invertida.

O quereres e o estares sempre a fim Do que em mim é de mim tão desigual Faz-me querer-te bem, querer-te mal Bem a ti, mal ao quereres assim Infinitivamente pessoal E eu querendo querer-te sem ter fim E, querendo-te, aprender o total Do querer que há e do que não há em mim

Observe que mesmo percebendo essa dificuldade de separar o outro de seu querer, mesmo assim, querer-te sem ter fim, pois só posso querer-te se aprendo o total do querer que há e do que não há em mim, só posso querer-te sem ter fim se aprendo (-me), se me individualizo, se me (re)conheço na relação amorosa. A proposta seria conhecer-se melhor a partir do desejo do outro? Ou poderíamos pensar aqui no desejo de fusão camoniano (e também barroco) Transforma-se o amador na coisa amada, por virtude de tanto imaginar, não tenho mais, pois, que desejar, pois em mim tenho a parte desejada ? Fusão ou individualização? Qual o enigma de O Quereres?


Minha sugestão é a de aproximar Camões e Caetano Veloso e deixá-los conversando. E explorar a carpintaria poética da letra, as metáforas, antíteses e metonímias com as quais ele constrói a canção. Os recursos sonoros das rimas, dos quiasmos, da métrica e de como a forma fixa contrapõe-se à desconstrução causada pelo desencontro amoroso, as oposições que vão desde a dos verbos Querer X Ser, passam pelas antíteses do texto, opõem Eu X Tu e chegam à metalinguagem Onde queres o livre, decassílabo e Tudo métrica e rima e nunca dor. Ah, e muito importante: ouçam a canção!

A gravação original está no álbum Velô, é um pop-rock, a gravação justapõe tessituras melódicas com uma guitarra, que se intensifica no rock'roll, um baixo que traz uma dramaticidade interessante, principalmente no refrão, e um gongo chinês incrível feito pela bateria. No entanto, Caetano diz que fez a canção como um cordel e grava a música nesse formato no álbum Totalmente Demais. Vale a pena ouvir essas duas versões! Ah, encontrei esse vídeo sensacional desses dois professores que, além de sacarem tudo de literatura, ainda são músicos! Perfeitos!


Caetanem-se, amigos!!


Deixo também dois poemas de Camões que dialogam com O quereres

1- Transforma-se o amador na cousa amada Transforma-se o amador na cousa amada, Por virtude do muito imaginar; Não tenho logo mais que desejar, Pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minha alma transformada, Que mais deseja o corpo de alcançar? Em si sómente pode descansar, Pois consigo tal alma está liada. Mas esta linda e pura semideia, Que, como o acidente em seu sujeito, Assim co'a alma minha se conforma, Está no pensamento como ideia; [E] o vivo e puro amor de que sou feito, Como matéria simples busca a forma. Luís de Camões


2- Amor é fogo que arde sem se ver Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer; É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? Luís de Camões



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