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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola.

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Temas como empatia, solidão e morte nesses tempos de pandemia se tornaram muito importantes. Minha busca foi a de atravessar esses temas e tempos de modo mais consciente, pensando em como podemos nos manter sãos e firmes em um mundo que parece se desfazer e em como e onde encontramos respostas a tantas perguntas, quando só o que ouvimos são clichês, frases feitas e certezas absolutas, absolutamente desconectadas da realidade. Então recorri a Clarice Lispector em seu último livro, quando a escritora se despedia da vida devido a uma doença que era, naquela altura, terminal. O que podemos fazer na iminência de ? O que fizeram outros homens e mulheres, ao se depararem com a morte? Clarice saiu de si e olhou o outro. Do centro do furacão olhou pra fora de si mesma e isso sempre me emocionou. Por isso resolvi montar esse texto com fragmentos do romance. Peguei emprestada uma ideia do escritor e ilustrador André Neves , chamada Lives Inventadas, em que ele conversa com autores sobre suas infâncias e fiz uma live inventada com Rodrigo S.M., espero que gostem e que Clarice me perdoe o atrevimento.

Inicio essa live com uma breve apresentação de Rodrigo SM, autor/narrador e personagem de A Hora da Estrela, romance publicado pela editora José Olympio, em 1977. Nessa breve conversa falaremos da importância da escrita, do papel da literatura e do escritor, de seu romance e das escolhas de temas e personagens, principalmente de Macabéa, uma migrante nordestina no Rio de Janeiro.

Fale um pouco sobre você. Quais são os antecedentes de sua escrita?

Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim.

Sim, minha força está na solidão.

Por que escrever? Qual a importância da escrita em sua vida?

Porque escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo e ao escrever me surpreendo um pouco, pois descobri que tenho um destino. Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse sempre a novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Escrevo, portanto, por motivo grave de “força maior”, como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”. Sim, minha força está na solidão.

E como escreve?

Para essa resposta preciso utilizar uma imagem, porque não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. Então, como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido.

Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.

Você atribui uma função social à literatura?

Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é palavra. Assim é que uma história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. Por exemplo, estou escrevendo uma história sobre as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Explico. É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos. A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto.

Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela.

que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.

Você se considera um narrador tradicional? Como planeja sua narrativa?

Eu, Rodrigo S. M. não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo. É visão da iminência de, com sangue arfante de tão vivo que poderá escorrer e se coagular em cubos de geleia trêmula. Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso.

Se há veracidade nela – é claro que a história é verdadeira embora inventada – que cada um a reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial.

Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.

Por que exatamente uma nordestina vivendo no Rio de Janeiro?

Porque é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou.

Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?

Como se sente escrevendo sobre alguém tão diferente de você?

Transgredir os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Parece que estou mudando o modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. E quero aceitar minha liberdade sem pensar o que muitos acham: que existir é coisa de doido, caso de loucura. Porque parece. Existir não é lógico.

É que “quem sou eu?” provoca necessidade. Quem se indaga é incompleto.

Macabéa é invisível numa sociedade que naturaliza essa invisibilidade. O que ela teria de especial para atrair sua atenção?

A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada em cheio no chão. É que “quem sou eu?” provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto.

Imaginando-a pensei em escrever sobre alguém que era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim. Parecia não ter sangue, era um pouco encardida, ninguém a olhava na rua, era café frio, era de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz, mas acreditava , só que não se sabe em quê, não reclama de nada, não reage, não tem fibra, é doce e obediente e não fazia perguntas, não sabia que era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz, só queria viver, apenas matéria vivente em sua fonte primária, apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. Ter futuro era luxo.

Ah, falando em luxo, tinha um, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos. E tinha também uma infelicidade: era sensual. Quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava si própria.

Como você fez pra entrar na personagem? Você fez algum laboratório?

Isso será coragem minha, a de abandonar sentimentos antigos já confortáveis. Agora não é confortável: para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr ao nível da nordestina.

Ela se me grudou na pele qual melado pegajoso ou lama negra. Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Estou passando por um pequeno inferno com esta história.

A dor de dentes que perpassa esta história é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade

Então é uma relação especular? Parece que você está sofrendo de excesso de empatia ...

Vejo a nordestina se olhando ao espelho e no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. Ela sente muita dor de dentes. A dor de dentes que perpassa esta história é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade? Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes. Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. Que se há de fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só? Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.

Como você definiria esse livro?

Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.

defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar

O que encontramos nesse romance é um modelo até certo ponto nada inédito na nossa literatura, não ? Há um triângulo amoroso entre Macabéa, Olímpico e Glória e há uma cartomante, todos vivendo no Rio de Janeiro. Parece que essa história já foi contada antes...

História exterior e explícita, sim, mas que contém segredos – a começar por um dos títulos. “Quanto ao futuro”, que é precedido por um ponto final e seguido de outro ponto final. Não se trata de capricho meu – no fim talvez se entenda a necessidade do delimitado.

Olímpico e Macabéa se conheceram e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam, começaram uma espécie de namoro, até que ele talvez visse que Macabéa não tinha força de raça, era subproduto.

De fato, Macabéa achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto, então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar. Essa economia lhe dava alguma segurança pois, quem cai, do chão não passa. Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e telefone. Depois que Olímpico a despediu, já que ela não era uma pessoa triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela não sentiu desespero, etc. etc.) Também que é que ela podia fazer? Pois ela era crônica. E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para quem podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.

Olímpico é um homem que vinha do sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha da paixão por sua terra braba e rachada pela seca. Trouxera consigo, comprada no mercado da Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse sua e exclusiva. Nascera crestado e duro que nem galho seco de árvore ou pedra ao sol, sabia muito bem o que queria e ter matado e roubado faziam com que ele não fosse um simples acontecido qualquer, davam-lhe uma categoria, faziam dele um homem com honra até lavada.

Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico. Além de ter uma grande vantagem que nordestino não podia desprezar. É que o fato de ser carioca tornava-a pertencente ao ambicionado clã do sul do país. Vendo-a, ele logo adivinhou que, apesar de feia, Glória era bem alimentada. E isso fazia dela material de boa qualidade.

E ainda temos a cartomante que, como toda cartomante, dá à Macabéa a coragem de ter esperança.

Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro.

Você tem algum desejo de que seu livro mude alguma coisa na nossa sociedade?

De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada magreza. E um dia, quem sabe, cantarei loas que não as dificuldades da nordestina.

Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfulo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica.

E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber.

A gente precisa o tempo todo se perguntar, embora não saiba a quem, se devemos mesmo amar aquele que nos trucida e perguntar quem de vós me trucida.

Em muitos momentos da narrativa você menciona a morte, ao mesmo tempo que defende a força vital como uma resistência , definida como” lutar como quem se afoga, mesmo que morra depois”. Fale mais sobre isso.

A morte é nesta história o meu personagem predileto. As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me perdoo a clarividência. Eu poderia resolver pelo caminho mais fácil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago. A gente precisa o tempo todo se perguntar, embora não saiba a quem, se devemos mesmo amar aquele que nos trucida e perguntar quem de vós me trucida.

Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.

Pra finalizar nossa conversa, gostaria de deixar alguma mensagem para os leitores?

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Sei que quando eu morrer vou ouvir o violino e pedirei música, música... Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas — mas eu também?!

Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.

Sim.

Observação: Penso que essa seria uma atividade bem interessante para avaliar a leitura de seus alunos em tempos de ensino à distância. Essa atividade poderia ser feita com personagens ou autores dos livros adotados.

A Hora da Estrela em PDF :



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