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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Romance

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Hoje quero dividir com vocês uma sequência didática que usei algumas vezes com minhas turmas de Literatura no Ensino Médio, a partir do filme Romance (2008) de Guel Arraes, com roteiro dele e de Jorge Furtado. Divido aqui essa experiência bem sucedida, porque o filme é muito interessante, tem um roteiro riquíssimo para ser explorado nas aulas de Literatura e de Linguagens e a partir dele podemos discutir temas importantíssimos pra nossa disciplina, como mostrarei no fim desse post. Mas antes, vamos relembrar a lenda de Tristão e Isolda.

A lenda
Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor e morte? É de Tristão e Isolda, a rainha. Ouvi como em alegria plena e em grande aflição eles se amaram, depois morreram no mesmo dia, ele por ela , ela por ele.

A lenda de Tristão e Isolda atravessou a nossa cultura por oito séculos, sendo a história de amor que serve de base para todas as outras conhecidas. Inicialmente a lenda celta circulou em inúmeras versões orais , até que chegou, no século XII, à região da Normandia, onde adquiriu características do amor cortês e dos romances de cavalaria. No século XII, a personagem Tristão foi incluída nos círculos arturianos, sendo Tristão um dos cavaleiros da Távola Redonda, alcançando grande popularidade. A partir do séc. XIX , com o interesse do Romantismo por textos medievais, a lenda volta a ganhar força na arte ocidental, influenciando a música, o teatro, a literatura e o cinema. Mas , por que essa história é tão resistente ao tempo?

Terei como base nesse post o livro O romance de Tristão e Isolda, de Joseph Bédier ( * ), pois é esse o exemplar que Pedro está lendo para Ana na primeira cena do filme. Na narrativa de Bédier, que se apoiou em textos medievais compilados, mas deles retirou as peripécias cavaleirescas, Tristão é enviado à Irlanda por seu tio, o rei Marcos, para buscar Isolda , a Loura, mulher com quem Marcos pretende se casar. Isolda viaja acompanhada de uma serva, que tem por missão ser a guardiã da beberagem preparada por sua mãe e que deverá ser oferecida aos noivos na noite de núpcias, para que o amor jamais se acabe. No entanto, por uma peripécia do destino, uma criança (o amor, sempre criança!) confunde os recipientes e Tristão e Isolda bebem, sem saber, do vinho do amor. Ao ver o acontecido, a serva atordoada, diz " Isolda, minha amiga , e vós, Tristão, foi a vossa morte que bebestes! /.../ o caminho é sem retorno, a força do amor já vos impele, e nunca mais tereis alegria sem dor, na taça maldita, bebestes o amor e a morte." Os amantes estão comprometidos para sempre.

Isolda casa-se com o rei Marcos, mas vive em adultério com Tristão, até que são descobertos, julgados e, posteriormente, separados de corpos, nunca de almas, unindo-se novamente apenas depois da morte.

O filme


Romance é a história de um casal de atores, Ana e Pedro , protagonizados por Letícia Sabatella e Wagner Moura, que ensaiam uma peça contando a história de Tristão e Isolda. A partir do texto medieval, discutem sobre o amor recíproco infeliz e sobre os temas mais caros à vida humana : amor e morte. Durante os ensaios apaixonam-se , vivem intensamente o sentimento amoroso no palco e na vida, mas separam-se quando Ana vai para o Rio de Janeiro trabalhar em novelas.

Nessa parte do roteiro, a moldura narrativa da história de Ana e Pedro é a história de Tristão e Isolda. O amor do casal medieval reflete e duplica o amor do casal de atores, pois nas cenas de ensaio da peça clássica há uma representação de uma representação ( são atores duas vezes, no teatro e no filme), há uma interpretação da representação ( que ocorre nos diálogos entre Pedro e Ana sobre a peça ensaiada) e há o olhar do espectador que vê o filme e o ensaio ao mesmo tempo, o que produz, simultaneamente no espectador uma representação tanto daquilo que antecede a obra Romance , no caso a história de amor de Tristão e Isolda, quanto aquilo que essa obra desencadeia _ o filme. E aqui temos a ficção duplicando-se por dentro, falando de si mesma, tornando-se autorreflexiva , trata-se , portanto, de uma metaficção, que, nas palavras do professor Gustavo Bernardo é uma ficção que não esconde que o é, mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato ficcional, e não um relato da própria verdade” (2010, p. 42). E a dinâmica do processo metaficcional se dá a partir da intertextualidade – através da paródia, do pastiche, do eco, da alusão, da citação direta ou do paralelismo estrutural. A riqueza desse roteiro permite que possamos perceber todos esses processos intertextuais estruturando a obra.

Diante da total ausência de limites entre a representação da peça e o relacionamento amoroso, Ana diz que "tem ciúme desse amor de teatro" ao que Pedro responde dizendo que "todo amor é verdade e representação ao mesmo tempo". A cena do vinho do amor é bem exemplar dessa ausência de limite entre as duas histórias :


Voltando à narrativa do filme, Ana , trabalha em novelas durante a semana no Rio, começa a alcançar sucesso popular e faz teatro nos finais de semana. O teatro lota com pessoas que vão atrás da atriz e não da história que está sendo encenada, mostrando uma crítica ao culto a celebridades promovido pela televisão. Numa peripécia narrativa clássica das histórias de amor, Pedro ouve uma conversa entre Ana e sua produtora e pensa estar sendo traído, o que causa a separação do casal. A peça acaba. O relacionamento também. É a confirmação do amor recíproco infeliz.

Pedro segue montando peças clássicas, como O beijo no asfalto, Som e fúria, Otelo e Cyrano de Bergerac, enquanto Ana participa de novelas, se torna um fenômeno de audiência e nessa parte da história entra em discussão o que é arte, qual o papel da arte e a influência dos meios ( media) determinando o modo de produção artística na indústria cultural, com uma crítica contundente ao papel comercial da TV.


Tristão e Isolda no sertão

O amor quando é proibido, atiça mais a paixão / Como a água represada, que precisa dar vazão / Foi assim que aconteceu, com Isolda e Tristão.

Reencontram-se três anos mais tarde , quando aceitam participar de um especial de fim de ano pra televisão em que adaptam a história de Tristão e Isolda para o sertão nordestino. Para a filmagem no sertão, surge uma segunda moldura narrativa, a história criada por Edmond de Rostand, Cyrano de Bergerac (**) , personagem do século XIX que, por amar intensamente Roxane e ser muito feio ( tem um enorme nariz), escreve palavras de amor para serem ditas pelo belo Cristiano, por quem Roxane se apaixona. É muito interessante que no dia em que o casal protagonista se reencontra é justamente essa peça que está sendo encenada. No novo projeto de adaptar Tristão e Isolda para a TV, Pedro será o roteirista e diretor da adaptação e Ana , ainda vivendo Isolda, contracena com José, um ator que faz o papel de Tristão no especial. Durante essa filmagem, Ana e Pedro voltam a se relacionar, mas agora vivendo um triângulo amoroso com José, aquele que enuncia as palavras que Pedro põe em sua boca. "Criei-te como um filho e agora queres o leito do pai" é uma fala que serve tanto para explicitar a traição de Tristão ao Coronel Marcos, quanto a traição de José ( Tristão) a Pedro ( autor) . " Enquanto me escondia à sombra de uma história, o outro recebia o beijo da glória" ( Cyrano de Bergerac fala a Roxane, mas poderia ser Pedro falando a Ana. A ficção da ficção. Metaficção.

Além desse novo diálogo intertextual, essa parte da narrativa traz toda a discussão sobre a permanência de raízes medievais no nordeste brasileiro, tão explorada por Suassuna em seu movimento Armorial (***). Nessa nova versão do texto medieval, os trovadores medievais serão os cantadores e violeiros, os cavaleiros serão os vaqueiros e os reis e rainhas serão os coronéis e donos de fazenda de gado.

Vemos surgir do roteiro de Pedro uma história regional, cantada em versos de cordel, com argumentos ligados à natureza e à paisagem sertanejas. Observamos no Tristão sertanejo a permanência do comportamento heroico do cavaleiro medieval, tanto na conquista da dama, quanto no amor proibido, que integram o repertório de inúmeros folhetos de cordel. E no plano macro do roteiro do filme Romance, a personagem José/ Orlando, enganadora, esperta, astuciosa lembra muito João Grilo, personagem picaresco medieval português que reaparece nos cordéis nordestinos e ganha destaque nacional no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna .


As filmagens vão chegando ao fim e os problemas se acumulam. Além da economia no orçamento da produção, o diretor da TV exige um final feliz para o episódio e Pedro se recusa a cumprir essa exigência. É novamente no último dia de gravação que o triângulo amoroso se desfaz, Ana (como Roxane) descobre que José não era quem ela pensava. O filme acaba. O triângulo amoroso também.


O fim da trama transforma a inicial história trágica de amor , Tristão e Isolda, numa comédia para o teatro, escrita por Pedro e contracenada com Ana, chamada Romance. Vemos o casal em cena misturando todas as histórias com a deles, num pastiche que permite que o espectador do filme Romance _ moldura narrativa que abriga todas as outras_ tenha, finalmente, um final feliz, desconstruindo os textos ficcionais dos quais a história se origina , além de chamar nossa atenção para o perigo da univocidade do autor, convidando-nos a sermos co-criadores de histórias. A nova forma de ver o mundo é dialógica, múltipla e aberta.


Por que levar o filme Romance pra sala de aula?


Em primeiro lugar, porque é uma história de amor deliciosa e quem não curte uma história bem contada? Em segundo lugar, porque é riquíssimo em elementos intertextuais, o que nos permite ampliar o universo do filme para muito além de uma comédia romântica.

O filme põe em jogo as possibilidades narrativas em diferentes suportes, como o livro, o teatro, a televisão e o cinema e nos convoca a refletir sobre as limitações e interseções presentes em cada um deles: suas técnicas próprias, seus sistemas de imagens, a diversidade de interesses e estratégias particulares, chamando nossa atenção para como se dá a recepção de uma obra a partir da media em que ela se ancora.

Outra sacada genial do roteiro é criar quadros vivos nas cenas a partir de conhecidas obras de arte de tema amor. A seleção de imagens é muito rica.


O público-alvo


Se estivermos em turmas da 1a série do EM, podemos usar o filme para introduzir os conteúdos a serem trabalhados durante o ano, tanto em relação aos conceitos de teoria ( que estão enumerados no próximo parágrafo), que serão necessários para a compreensão e fruição do texto literário, quanto em relação aos gêneros e a periodização literária, principalmente para falar dos aspectos medievais na literatura trovadoresca.

Se estivermos em turmas da 3a série do EM, o aproveitamento é total. Observe os conteúdos retirados do edital do 1º exame de qualificação da UERJ/2020, praticamente todos os conteúdos são possíveis de serem trabalhados/revisados utilizando o filme:

Os Tipos de intertextualidade ( paráfrase, epígrafe, paródia, pastiche, eco, alusão, citação direta, paralelismo estrutural) . Elementos não verbais : relação entre o verbal e o não verbal; imagens; recursos gráficos e tipográficos; Aspectos literários • Natureza dos textos: o poético; o narrativo; o dramático • Representações da realidade: efeito de real; verossimilhança externa e interna, ficção, realidade e metaficção • Elementos da narrativa: construção de personagens; narrador, foco narrativo, índices narrativos; representações do tempo e do espaço • Recursos estilísticos: seleção e combinação de palavras; efeitos sonoros; figurações e imagens; representações da variabilidade linguística.


Acrescento a esses conteúdos o conceito de romance, importantíssimo para a literatura, já que costuma causar algumas confusões por ser usado como um termo genérico para histórias de amor, mas que carrega muitas informações teóricas no seu uso mais restrito. Não é à toa que o filme tem esse nome. Explore :

1- O termo romance, do latim romanice, quer dizer "em língua românica". Na evolução do Latim para as línguas românicas, inúmeros romances ( línguas faladas) apareceram. O romanço galaico-português que deu origem ao Português e ao Galego é um exemplo.

2- Durante a Idade Média, enquanto leis, documentos e tratados eram escritos em latim, as lendas, histórias de cavalaria, e os contos populares eram narrativas de de tradição oral , sendo geralmente de autor anônimo e só mais tarde compiladas. Por estarem relacionadas à oralidade, passam a ser conhecidas por romances e integram o romanceiro medieval.

3- Como forma literária moderna, o termo designa uma composição em prosa.

4- A partir do Romantismo, as narrativas em prosa tornam-se o gênero preferido dos escritores. Portanto, dentro do gênero narrativo, romance designa um tipo de narrativa que possui um enredo narrado por um narrador, em prosa ( nunca em versos) que descreve ações e sentimentos de personagens, num tempo e espaços definidos. Popularmente, o termo romance , associado ao Romantismo e suas narrativas cheias de peripécias amorosas, passa a ser sinônimo de histórias de amor.


O amor em Romance


Outro conteúdo a ser explorado pelo filme refere-se aos tipos de amor presentes nas histórias. Poderíamos mesmo afirmar que há uma linha do tempo amorosa que vem se modificando através de eras dentro do roteiro, promovendo outras leituras desse mesmo tema: o amor cortês, na Idade Média, o amor romântico, no século XIX e o amor na contemporaneidade, no séc XXI.

O amor cortês está relacionado à lenda medieval de Tristão e Isolda, apresentando a lealdade e a coragem do cavaleiro Tristão, a dama idealizada , a coita , a comunhão mística entre as almas dos amantes e a vassalagem amorosa. ( bom momento para relacionar esse conteúdo ao estudo das Cantigas )

O amor romântico aparece na moldura de Cyrano de Bergerac, um poeta, corajoso, espadachim, altruísta, cheio de maravilhosas qualidades, mas um homem feio, rejeitado pelas pessoas à sua volta. A dualidade entre aparência e essência presente no herói romântico e seu desconcerto com o mundo é o fio que conduz a narrativa a ponto de vermos Cyrano preferir ver a amada feliz, mesmo que seja nos braços de outro a se declarar e perdê-la para sempre. Ele ama o amor que sente por Roxane até a morte.

Na contemporaneidade vemos o amor de Pedro e Ana terminar em comédia no teatro, com a vivência amorosa do casal e suas experiências transformadas em argumento. Não nos esqueçamos ( e a gente quase esquece) de que todas as personagens transitam entre ficção e realidade, sendo, elas próprias, criações ficcionais. Portanto, o fim da história do casal contemporâneo é também invenção, o que nos levaria a perguntar : Seria toda história de amor uma ficção?

Deixo de presente para quem chegou até aqui um pequeno vídeo que montei com o cordel Tristão e Isolda no sertão na íntegra e imagens do grande J. Borges. Espero que gostem!

Essa é uma excelente atividade pra começar o ano letivo em turmas de Ensino Médio. Mas é também um ótima oportunidade pra todos nós, professores de linguagem , pensarmos nas questões ligadas ao nosso fazer e sobre o que realmente importa ser discutido em aulas de Literatura. Ah, e se você usar essa atividade em suas aulas, deixe um comentário contando como foi!

Link do filme Romance na íntegra : https://www.youtube.com/watch?v=EvMgwpfJoIU


Sugestões bibliográficas

1- O livro da metaficção . BERNARDO, Gustavo. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010









2- Os tipos de intertextualidade. Esse PDF da PUC- Rio faz um estudo dos tipos de intertextualidade, utilizando exemplos da Bíblia. O material teórico está bem completo https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/37361/37361_3.PDF

3- Se quiser curtir um pouquinho da ópera de Wagner, aqui vai um pequeno , mas lindo momento: https://revistasera.info/2017/07/tristao-e-isolda-de-wagner-um-monumento-ao-amor-transcendental-frederico-toscano/


Notas

* publicado originalmente em 1900, com 1a edição no Brasil em 1988, São Paulo: Martins Fontes, 1988

***A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos "folhetos" do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus "cantares", e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados.” (Jornal de Semana, 20 de maio de 1975)

















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