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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Sobre a rebelde Barcelona

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Obs.1 Antes de começar a escrita desse post, preciso voltar ao último , sobre Granada, para esclarecer a ausência de menção à comunidade judaica ali. É que comecei dizendo que em Granada era "tudo igual, mas diferente". Para não repetir toda a terrível história dos Sefarditas de Sevilha, que era a mesma que a dos de Granada, resolvi abreviar. Então, esclarecendo, houve um bairro judeu em Granada, chamado de Granada de los judios e que foi renomeado, após a conquista, de Realejo. Hoje só sobrou do bairro o traçado das ruas e alguns costumes e gastronomia, que buscam recuperar uma memória daqueles tempos. Deixo aqui um link para um breve passeio pelo bairro : https://www.youtube.com/watch?v=9-njaiDrLfk

Obs.2 Outra omissão imperdoável foi a de esquecer uma sugestão de texto motivador para uma aula sobre religiões/cultura/ direitos humanos/ história/ Inquisição a linda música Milonga del moro judio, de Jorge Drexler. Drexler é um músico uruguaio que hoje vive em Madri e escolhe uma milonga - ritmo tradicional do Uruguai- para falar sobre intolerância religiosa. A música é linda! Ouça, é linda!


A viagem continua aqui ...


Saindo do "reino de Castela" e indo em direção a Barcelona, parei por 4 noites em Valência

(moderna, vibrante, surpreendente), 5 em Palma de Maiorca (uma ilha espanhola de população alemã rs ) cheia de história e com praias lindas e fechei a viagem em Barcelona.

São muitas as Barcelonas pra visitar : a do roteiro Gaudí e suas obras inigualáveis, a do tour pela arquitetura modernista catalã que tem seu máximo expoente no Palau de la Música Catalana; a dos mercados e ramblas, a do Museu Picasso com extensão ao restaurante dos artistas e intelectuais Els Quatre Gats, mundialmente conhecido pelo filme Vicky Cristina Barcelona e até mesmo a do futebol do Barça e seu estádio , no Camp Nou. Mas a minha de hoje, sobre a qual quero falar aqui é a de Outubro de 2019, que revisitei num momento em que as feridas pela prisão dos presos políticos dois anos antes ainda estavam abertas. Vou falar da Barcelona do livro A Catedral do Mar, que li meses depois de voltar de Barcelona de uma visita que havia feito há alguns anos e que reencontrei ali naquelas bandeiras independentistas penduradas nas janelas por onde andei.


No livro, Ildefonso Falcones, a cidade de Barcelona vai crescendo junto com a construção da igreja Santa Maria del Mar. E crescem juntas, cidade e igreja, por iniciativa de seus cidadãos, que decidem trabalhar em mutirão, doando dinheiro ou o próprio trabalho. Explico : a cidade cresce para fora das muralhas no séc. XIII, para o bairro da Ribeira, hoje El Born, habitado por trabalhadores braçais, comerciantes , artesãos, o que o fez ficar conhecido como o bairro das guildas ( uma espécie de avô dos sindicatos). Há duas histórias que correm paralelas ( na boca do povo, não no livro) . Numa , dizem que o bairro da Ribeira cresceu, prosperou e precisou de uma nova igreja, mas o dinheiro da cidade estava todo comprometido com a Catedral de Barcelona , frequentada pela nobreza. Na outra, dizem que a nobreza se incomodava com a presença de trabalhadores braçais nas missas da Catedral. Fato é que coube às guildas construir uma nova igreja para e do povo e assim surgiu o único exemplo de gótico catalão ( a igreja levou 55 anos para ser finalizada sem modificações no projeto original) , Santa Maria del Mar.

Pelos bairros gótico e El Born, revivi a história de Arnau Estanyol e sua associação à confraria dos bastaixos_ os estivadores do porto de Barcelona. O livro , ao contar essa história, mostra toda a cultura que envolve os catalães, sua vivência baseada na coletividade, na liberdade de que sempre gozou a cidade , em oposição a áreas feudais da Catalunha.

Um momento marcante pra mim nesse tour aconteceu no momento em que paramos em frente à igreja de Santa Maria del Mar e o guia, ao falar da construção bancada pelo povo daquele bairro, praticamente com recursos próprios e com a doação de trabalho, nos pediu que olhássemos bem a porta da igreja. Ali vimos essa cena :

Nas portas principais do templo, dois bastaixos carregam as pedras que foram usadas em sua construção. O guia pediu que quando olhássemos a igreja lembrássemos de que cada pedra daquela construção veio de Montjuic, nas costas dos trabalhadores do porto. E logo depois ele nos mostrou uma fotografia de um casteller. Segundo o guia, o casteller, patrimônio imaterial de Barcelona, é o correspondente exato ao monumento de cal e pedra que é a igreja Santa Maria del Mar, construída pela coletividade.

Lindo, né? As apresentações acontecem por toda a Catalunha, principalmente nos meses de abril e nos de verão.

Hoje o El Born está gentrificado, mas ainda mantém nos nomes das ruas a história desses ofícios ali praticados, como rua das Vidrerias, Miralles (espelho), Sombres (chapéu), Olles (panelas). Ali também ficam o Palau de la Música Catalana e o Museu Picasso, dois edifícios muito próprios da cultura catalã..

Um pouquinho de história... ( mas eu volto pra Barcelona!)


Barcelona fica no nordeste da Península Ibérica, de frente para o Mediterrâneo e ao lado de território que hoje chamamos de França e bastante distante tanto de Paris, quanto de Madri e mais ainda de Castela e Leão, os centros de poder político da época medieval. Carlos Magno, rei dos francos, defendendo-se principalmente dos povos árabes que ali entravam pelo mar, cria um "território de amortecimento" de invasões ao território francês, a que chamou de Marca Hispânica. Essa amortecimento funcionava assim: antes de conseguirem cruzar as fronteiras do império franco, portanto ainda em território dessa Marca (no caso a região da Catalunha) , as batalhas aconteciam, sem levar nenhum perigo para a população das cidades francas. Para administrar a área , hoje formada por quatro províncias - Barcelona, Tarragona, Girona e Lérida, os reis francos designaram condes, segundo critérios de eficiência militar defensiva e de lealdade aos nobres de seu império. O Condado de Barcelona foi o de maior protagonismo. Por encontrar-se espremido entre o califado árabe e os francos e de frente para o Mediterrâneo, construiu sua identidade a partir de resistências cotidianas, de influências e de trocas culturais com povos vizinhos do (hoje) sul da França, dos Pirineus, de cidades como Nápoles e Gênova e de ilhas mediterrâneas como Maiorca, Sicília, Córsega. Esse cenário de certa autonomia favoreceu tanto uma organização política e social local, quanto a criação de Instituições e códigos de conduta escritos em seu próprio idioma, a língua catalã, expressão máxima dessa cultura. Mas essa "independência" incomodou tanto os francos quanto os castelhanos.

A Língua Catalã

Olhar para o idioma Catalão é olhar para a história da Catalunha. Observe:

Boa noite. Quero uma mesa pra dois perto da janela, por favor. Eu e meu irmão vamos comer carne.

Em catalão ficaria assim:

Bona nit. Vull una taula per a dos per la finestra, si us plau. El meu germà i jo anem a menjar carn.

Em francês:

Bonne nuit. Je veux une table pour deux par la fenêtre, s'il vous plaît. Mon frère et moi allons manger de la viande.

Em espanhol:

Buenas noches. Quiero una mesa para dos junto a la ventana, por favor. Mi hermano y yo vamos a comer carne.

O catalão é uma língua neolatina e situa-se entre os grupos galo-românico e ibero-românico. A partir do séc XV passa a sofrer influências do castelhano. Trazendo nossas frases de exemplo para a questão histórico-geográfica, observamos a estrutura sintática comum às três línguas ( são todas neolatinas), mas com diferenças e semelhanças no vocabulário e fonética, tanto entre o catalão e o francês _ nit/nuit , taula/table, finestra/fenêtre, si us plau/ si vous plâit , quanto entre o catalão e o espanhol germà/hermano, dos/dos, carn/carne, a menjar/a comer e a ausência de partitivo de ( de la viande) .

Observar a trajetória da língua catalã permite que percebamos bem claramente que a Catalunha sempre viveu na fronteira, nunca aceitou bem reinados e que frequentemente na história pagou caro por sua rebeldia. As proibições do uso de sua língua em diferentes períodos da sua história, permitiu ao catalão uma grande variação dialetal, mas amalgamou modos de ver o mundo que até hoje provocam grande discussão em torno de sua autonomia. Língua é cultura. Língua é domínio. Língua é poder.


Voltando pra Barcelona

Aquela Barcelona resistente e rebelde estava ali o tempo todo, tanto nas palavras do taxista que nos levou à estação de Montserrat, muito emocionado ao falar do malsucedido referendo independentista, quanto nas inúmeras bandeiras da Catalunha independente penduradas nas janelas, observadas em todo o tour pelo centro histórico da cidade.

Uma observação em relação à bandeira, conhecida como estelada ( estrelada), é que ela foi inspirada na bandeira da independência de Cuba. Inclusive há relatos de que muitos catalães que emigraram pra América participaram das lutas pela independência de Argentina, Uruguai e Cuba, no fim do século XIX. A estelada é a bandeira independentista, a amarela e vermelha é a da Catalunha. Eu estava visitando Barcelona no início de outubro, quando fez dois anos da prisão dos independentistas. Havia manifestações marcadas para o fim daquela semana, quando sairia a sentença definitiva que os condenaria e que paralisaria a cidade por semanas. Saí de lá dois dias antes da decisão que condenou os independentistas a até 13 anos de prisão. Nem preciso dizer que as manifestações foram bem intensas e se prolongaram por todo aquele mês.


No fim da caminhada, ainda passamos por uma loja tradicional de souvenir , onde descobrimos uma tradição bem interessante da cultura catalã : os caganers.

Explico:

Em Barcelona, na tradição popular, não há Papai Noel, há o Caga Tió, esse boneco aí.

Ele é coberto com um cobertor no início de dezembro. As crianças vão alimentando o Caga Tió, deixando pequenos pedaços de fruta, pão, sementes. No dia de Natal, cantam essa música para " fer cagar ao Tió" :

Caga Tió

Caga torró

Avellanes i mató,

Si no cagues bé

Et daré un cop de bastó

Caga Tió

Caga, tronco/ Caga torrão/ Avelães e queijo mató ( tipo de queijo da Espanha)/ Se você não cagar bem/ Te bato com um bastão/ Caga, tronco!

As crianças, então , saem da sala e os pais põem os presentes debaixo do cobertor. Qual a lógica? Cagar dá sorte, pois só caga aquele que teve o que comer, que foi alimentado.

Na época das festas eles lançam o caganer do ano, escolhem personalidades que tenham se destacado negativamente ou positivamente. Como ainda era outubro, havia poucos em estoque. O caganer de 2019 foi a cantora Rosalía, mas outros também foram bem votados, como Greta, Boris Johnson e La casa de papel rs.

Toda cultura tem uma lente própria pela qual olha o mundo. Conhecer essa Barcelona de outubro me fez pensar em três palavras: resistência política e linguística; coletividade, observada pela busca de um objetivo comum, seja na construção da igreja ou na de um casteller e continuidade do grupo, representada nos tradicionais caganers e neles a importância dada à alimentação e à adubação do solo para futuras colheitas. Curti e coloquei essas três palavras na mala da memória, trouxe-as para cá e agora as compartilho com vocês.


Sugestões de leitura:

1-A catedral do mar, Ildefonso Falcones.

2- El pintor de almas, Ildefonso Falcones. Grijalbo, 2019

3- A sombra do vento, Carlos Ruiz Zafón, 2001

4- D. Quixote, como sempre! (a 1ª vez que ele viu o mar foi em Barcelona).

Links interessantes :

A série catalã Merlí https://www.netflix.com/br/title/80134797

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