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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Recife: sobre pontes e alumbramentos

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Assim como a primeira vez que vi o Tejo foi pelas mãos de Fernando Pessoa, na minha primeira vez no Capibaribe fui levada por Manuel Bandeira em seu poema Evocação do Recife. Portanto, é a ele que evoco para traçar essa viagem pelas ruas daquela cidade, por seus rios, suas pontes, mangues e poetas. Recife é uma cidade literária. Sendo a mais importante província do Nordeste, os dois rios que se encontram e ali desaguam - o Beberibe e o Capibaribe_ poderiam ser metáforas da caudalosa cultura popular daquela região e é dessa metáfora do rio que vou me servir para fazer essa travessia de Recife a partir de seus poetas, tentando confrontar essa cidade imaginária com a que tive o prazer de conhecer em 2018.

Evoco também meus amigos , com quem compartilhei aqueles momentos, a saudade tá batendo forte e, como antídoto, nada melhor que olhar os álbuns de retratos, com a certeza de que daqui a pouco estaremos juntos de novo.


Evocação do Recife

Bandeira no seu poema Evocação, define qual cidade quer cantar. Ele deseja o Recife poético, o da memória, o da infância. O poeta quer recuperar a cidade vivida, evocando as pessoas com quem conviveu, os brinquedos infantis, as ruas, os primeiros alumbramentos, até mesmo os problemas da cidade, como as cheias do rio Capibaribe/ Capiberibe. O poema é polifônico, com vozes de crianças e de adultos, em que se destacam duas, a do poeta-menino e a do poeta-adulto ( geralmente colocada entre parênteses) que dialogam no tempo. A voz lírica do menino vai mergulhando no espaço onírico da memória, onde reencontra a liberdade de sua infância cotidiana, livre como os versos livres dessa parte do poema, e nos convida a nos perdermos com ele pelos espaços da cidade, onde pesca escondido, fuma escondido, vê mulher nua.

Acesse o poema na íntegra aqui : https://www.escritas.org/pt/t/9074/evocacao-do-recife


O Recife de Bandeira

Nessa época Recife ainda trazia as marcas da escravidão recente, era comum a presença de ambulantes , de negros vendedores de frutas e seus pregões e já sofria com as enchentes dos rios Beberibe e Capiberibe, problemas que persistem até hoje e que moldam a geografia e a história da cidade. No início do século XX houve uma primeira tentativa de reforma urbana da cidade, com um projeto de elite que propunha sua modernização . É dessa época o poema e é desse Recife antigo que o poeta se ressente e teme que acabe. O tema da finitude, tão presente em sua obra se unifica em Recife morto = avô morto.

É bem interessante pensarmos que o centro histórico de Recife _ o Recife Antigo_ que visitamos atualmente é basicamente o daquela reforma temida por Manuel Bandeira. Como a cidade é entrecortada por rios que formam ilhas e zonas alagadas, as partes da cidade sempre foram de difícil integração e favorecia a concentração populacional nos bairros centrais de Recife, Santo Antônio, Santo Amaro, São José e Boa Vista. Observe o mapa abaixo

Nesse espaço bastante reduzido, se concentrava a maior parte da população da cidade no início do século. O avanço da reforma com construção de pontes , aterros, alargamento de avenidas e demolição do casario colonial vão criando novas áreas de habitação da burguesia e empurrando para a periferia da cidade as populações pobres, que habitavam as áreas alagadas e de mangue em mucambos e palafitas. Como consequência, essas populações migraram para morros, mangues e alagados fora do centro da cidade, em áreas desvalorizadas pela especulação imobiliária, formando grandes bolsões de desigualdade. No mapa acima se pode ver o espaço atingido por essa remodelação urbana de 1925.

Ao lado de Gilberto Freyre, que nessa época escreve Sobrados e Mucambos, um livro chave do sociólogo sobre a importância cultural das habitações brasileiras, Bandeira se coloca contrário a essas modificações e lamenta a possibilidade de que os nomes de sua cidade sejam trocados. Os nomes , felizmente ainda estão lá, mas a gentrificação aconteceu durante todo o século XX, com a remoção de aproximadamente 60 mil mucambos, habitações coletivas e precárias, sem infraestrutura, bem parecido com o bota-abaixo que ocorreu no Rio de Janeiro na mesma época. Recife hoje é o resultado de todas essas modificações.


Pelas ruas que andei procurei te encontrar, Recife...

Manuel Bandeira
Na Madalena revi teu nome Na Boa Vista quis te encontrar Rua do Sol, da Boa Hora Rua da Aurora, vou caminhar Rua das Ninfas, Matriz, Saudade Da Soledade de quem passou Rua Benfica, Boa viagem Na Piedade tanta dor Pelas ruas que andei, procurei Procurei, procurei te encontrar (Pelas ruas que andei, Alceu Valença)


Começamos nosso Recife pelo restaurante Leite. Esse restaurante foi uma viagem dentro da viagem! O Leite é o mais antigo restaurante em funcionamento no Brasil, é uma referência para a cultura, gastronomia e política brasileiras. Naquelas mesas foram fechados muitos pactos, acordos, sentaram-se ali intelectuais, filósofos e sociólogos, como Sartre, Gilberto Freyre e Simone de Beauvoir, à sua porta aconteceu um episódio histórico que antecipou a Revolução de 30 : o assassinato de João Pessoa. Naquelas mesas também a personagem Clara, do filme Aquarius do cineasta recifense Kleber Mendonça Filho, almoça, numa cena, com o amigo jornalista. Mas tudo isso só descobriríamos depois...

Sim é verdade! Paramos ali porque ao chegarmos ao hotel, mortos de fome, deixamos nossas malas e pedimos sugestão de um lugar para almoçar e a recepcionista nos indicou o Leite. Estava começando naquele lugar nosso encontro com Recife e não posso deixar de dizer , com um pouco de vergonha, que os cariocas não sabiam daquela preciosidade, descobrimos por um acaso feliz, como muitas outras coisas naqueles dias.

O Leite fica no bairro de Santo Antônio, uma ilha no coração da cidade. Saímos dali e começamos a seguir O cão sem plumas, como João Cabral chamou o rio Capibaribe no seu famoso poema. Seguindo esse fluxo geográfico-temporal, nos dirigimos ao Marco Zero a pé, margeando o rio, passando pelas pontes históricas da cidade, como a Bela Vista e a Duarte Coelho, flanando pela parte da cidade que já pulsava forte na época de Manuel Bandeira.

Nessa parte de Recife fica bem claro o afrancesamento da cidade iniciado no século XIX . Seguimos pela Rua do Sol até a Praça da República, com seus parques criados a partir do aterramento de mangues e canais e onde estão muitos edifícios históricos que hoje abrigam o Palácio da Justiça, a Assembleia Legislativa e a Faculdade de Direito. Do outro lado da margem do rio, a lindíssima rua da Aurora, um verdadeiro cenário! Nas proximidades da República também está o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo.

No caminho para o Marco Zero atravessamos muitas pontes entre o antigo e o novo: os barquinhos quase canoas que convivem com automóveis velozes, os mangues que insistem em existir,

Caminhamos cerca de 1 hora , seguindo o curso d'água e atravessando pontes, até chegarmos ao Marco Zero, ao cais de Recife, à foz do Capibaribe, onde a cidade começou. Abaixo algumas imagens desse casario lindo de morrer!

Próximo ao Marco Zero, conhecemos a rua do Bom Jesus, antiga Rua dos Judeus ( adoro observar essa tolerância religiosa rs ), que foi eleita, no final de 2019 por uma revista de arquitetura estadunidense, como a 3ª cidade mais bonita do mundo. Nela, encontramos a primeira sinagoga construída nas Américas, infelizmente estava fechada para visitação naquele dia. No final da rua, na parte profana, fica a Embaixada de Pernambuco, com o museu dos bonecos gigantes de Olinda, onde brincamos de dançar frevo.

Depois paramos na bodega do Véio e terminamos o reconhecimento no Cais do Sertão, museu interessantíssimo, que me levou pra conhecer a casa de Sinhá Vitória ( foi como me imaginei rs).

Já havíamos decidido, o nosso dia morreria dentro do rio.

Foi de dentro do rio que admiramos Recife. De dentro daquele rio que atraiu olhares líricos, mas também críticos de tantos poetas. Do rio que, ao cortar a cidade a divide entre os da terra e os da lama, aquele corpo d'água que espelha as mazelas do Nordeste brasileiro ao mesmo tempo que reflete os prédios modernos da cidade. Estávamos ali, no barco, absolutamente imersos naquela cidade que anoitecia e se mostrava linda, líquida, viva.


Capibaribe, o cão sem plumas

A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada, O rio ora lembrava a língua mansa de um cão ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. Aquele rio era como um cão sem plumas Capibaribe, O cão sem plumas. João Cabral de Melo Neto 1949-1950

Nos anos 50, quando João Cabral escreve O cão sem plumas, o novo plano diretor da cidade expande a mancha urbana para os lados da Boa Viagem , os trilhos de bonde se tornam pistas de asfalto . Nessa época, a construção de pontes, viadutos, ampliação do porto e do aeroporto e a construção dos primeiros arranha-céus mudam o rosto da cidade, que passa a atrair uma grande população vinda dos fluxos migratórios causados pela seca e pelo latifúndio improdutivo. Há um grande crescimento demográfico e a cidade não tem lugar pra todos. As habitações à beira do mangue se multiplicam

Aquele rio /.../ Abre-se em mangues Abre-se em flores de folhas duras e crespos pobres e negras como um negro/.../ como negros. Em silêncio se dá: abre-se numa flora em capas de terra negra. suja e mais mendiga em botinas ou luvas de terra como são os mendigos negros. para o pé ou a mão que mergulha É nelas, (nas salas de jantar pernambucanas) mas de costas para o rio que as grandes famílias espirituais da cidade chocam os ovos gordos de sua prosa

Os olhos do poeta veem todas as mazelas das vidas vividas na lama , no mangue, nos alagados, completamente alijadas de sua condição humana, numa cidade que se industrializava e deixava pessoas vivendo literalmente à margem da sociedade. É bem forte a imagem da lama que veste a pele dos homens como capa, botinas ou luvas. Como ser feliz ali? Leia o poema na íntegra aqui : http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet001.htm

O poeta se pergunta

Aquele rio saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?

Essa cidade de homens-caranguejos _ conceito criado por Josué de Castro ( ver nota) e adotado por João Cabral _ vai crescer paralelamente à cidade "oficial" por todo o século XX, a ponto de nos anos 90 Recife aparecer no IDH da ONU como a 4ª pior cidade do mundo para se viver.

"Agora, quando o caboclo sai de manhã para o trabalho, já o resto da família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços de lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luís vai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da própria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris". Josué de Castro, O ciclo do caranguejo, 1935

Manguetown


Num dia de sol, Recife acordou com a mesma fedentina do dia anterior Chico Science

Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown Manifesto Caranguejos com cérebro http://www.recife.pe.gov.br/chicoscience/textos_manifesto1.html

É desse ponto crítico do ano de 1991, após a incômoda divulgação da ONU, que um grupo de jovens artistas parte para fazer mais uma revolução na cena cultural do Recife. Por meio de uma mistura de ritmos regionais com o rock e o hip-hop, funk e música eletrônica, fazem críticas ao abandono social e à desigualdade, violência policial, assumindo a globalização como uma possibilidade de ressignificar o ponto de vista de onde se olha a cultura produzida na cidade. Antene-se ! é a palavra de ordem do movimento. Ouça:

Pra Chico Science, mangue é vida, lama é insurreição e Recife é a Manguetown. Ouça: https://open.spotify.com/track/1YrGWu68h115DkYinbJxRK

Com eles, entra em cena a periferia de Recife, suas mudanças e contradições. Divulgam um manifesto, criam o símbolo do movimento manguebeat _ uma antena parabólica enfiada na lama e ganham o Recife, o Brasil e o mundo. Começa aí uma virada na história da cidade, que sai do ostracismo e da apatia e vai, unindo a cultura popular à cultura pop, exibir seu aspecto multicultural. Ao se perguntar "por que no rio tem pato comendo lama", Chico Science provoca a mudança. Ouça:


Verticalização e resistência


Hoje, quando visitamos o Recife turístico, não nos deparamos mais com os mocambos e palafitas visíveis na cidade. A partir do ano 2000, já é possível afirmar que essas comunidades foram empurradas pra fora do eixo turístico e as que ficaram conseguiram se renovar, assumindo identidades, territórios e sustentabilidade. É o caso da Ilha de Deus,

localizada no centro de um dos maiores manguezais urbanos do Brasil , hoje local de turismo sustável, é uma ilha de coletores de camarões, caranguejos e o molusco sururu, cujo caldo é onipresente em Recife. A Ilha, que até os anos 90 estava totalmente abandonada à própria sorte, valeu-se da organização comunitária para exigir atenção dos poderes públicos e em 2009 ganhou uma ponte que a liga ao "outro lado do mundo". Desde então foi sendo urbanizada e hoje, além de fornecer mariscos para mercados e restaurantes da cidade, é um destino de turismo comunitário. É o mangue como fruta, como dizia o poeta João Cabral.

Nós não visitamos a Ilha de Deus, mas está aqui anotadinha no meu "caderninho de próxima vez".


Voltando o nosso Recife...

No fim do dia, acabamos nosso passeio bebendo , comendo e cantando às margens do rio, no bairro São José, no restaurante Catamarã. Foram boas horas ouvindo Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Lenine, Capiba, Lia de Itamaracá... Dali partimos pro nosso hotel, em Pina, mortos de cansados, mas já completamente conquistados pela cidade! Nosso hotel ficava praticamente ao lado de Brasília Teimosa, da janela do meu quarto eu via uma pontinha daquele bairro cheio de história pra contar.

Brasília Teimosa , localizada no bairro de Pina ( do ladinho de Boa Viagem) , era uma vila de pescadores que conseguiu resistir à especulação imobiliária. Esse nome refere-se ironicamente à construção de Brasília, que recebia a atenção e as verbas do governo federal, enquanto na 4ª maior cidade brasileira as pessoas tinham que se equilibrar em palafitas na beira do mangue. E o adjetivo Teimosa foi dado porque, contam os mais velhos, suas casas eram derrubadas de dia e eles as reconstruíam, teimosamente, à noite.

Hoje, urbanizada, encontra-se sob grande pressão especulativa. Esse documentário, de 2011, mostra o processo de urbanização da comunidade, com a abertura de uma avenida e a remoção das palafitas. Mas junto com a urbanização, o documentário presenta o drama dos removidos e a especulação imobiliária ocorrida na nova avenida aberta, vale a pena assistir! https://vimeo.com/groups/406396/videos/31704689

Foi dali que saíram muitos moradores que hoje habitam conjuntos residenciais em Cordeiro, bairro periférico localizado a 6 Km da cidade de Recife, originário de um antigo engenho de cana e que ainda hoje apresenta vocação agropecuária . A sensibilidade do documentarista ao mostrar logo no início um homem fazendo uma rede de pesca num conjunto habitacional localizado numa região rural denuncia as dificuldades que uma remoção forçada traz, como a perda das raízes comunitárias e a violência que decorre dessa perda, a inadaptação_ nesse caso a distância do mar_ a mudança de paisagem e as dificuldades decorrentes da mudança de matriz econômica e de profissão. Brasília Teimosa também foi escolhida para fechar o filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. A cena final mostra os prédios da Boa Viagem vistos a partir de uma laje da comunidade.

E foi também em Cordeiro, com indicação preciosa da recepcionista do nosso hotel, que pudemos conhecer a Casa de Reboco, uma casa de forró saída de um filme de Guell Arraes! Dançamos o melhor forró de nossas vidas, parecia que a qualquer momento Chicó apareceria ali pra dançar com a gente !

Ainda aproveitamos Recife nos dias seguintes, passeamos por Boa Viagem, fomos a mercados, praias, cachaçaria e subimos as ladeiras de Olinda. A cidade é multicultural e busca, a partir do discurso periférico , unir a cultura popular à cultura POP. Por ser hoje (como toda megacidade) distópica, tenta recuperar a relação de pertencimento de seus cidadãos com o espaço urbano a partir de um olhar poético, que pode ser visto pelas inúmeras esculturas de artistas recifenses espalhadas pela cidade e o que esses artistas escreveram sobre ela. A poesia espalha-se pela urbe a ponto de ter sido criado um roteiro literário por Recife e ao caminharmos por essas rotas poéticas é impossível não pensar que é a cultura a verdadeira e necessária ponte, aquela que pode integrar todas as partes da cidade.

Mas nada superou aquele entardecer no rio, foi um alumbramento. Dizem ser impossível que nos banhemos num mesmo rio duas vezes, estou escrevendo esse post pensando se isso pode mesmo ser verdade.


Links interessantes:

3- Livro: Guia prático histórico e sentimental da cidade de recife, de Gilberto Freyre. 1934

6-Documentário Chico Science, um caranguejo elétrico, Nação Zumbi. 2017












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