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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Tempo de recomeço : 6 textos para recomeçar o mundo

Atualizado: 22 de dez. de 2022

O blog ficou parado por mais de sete meses, mas a vida não parou. Apesar do mundo ter acabado e recomeçado muitas vezes nesses dois anos (mas também desde que dele temos memória) o tempo continuou passando no corpo, na natureza, no calendário, na nossa mente e nesse momento nos preparamos para um novo recomeço. A vacinação avançou muito, já vislumbramos o fim da pandemia e todos começamos a nos perguntar "e agora?".

Nesse post despretensioso quero compartilhar meu manual literário de recomeço com os textos que me ajudaram a atravessar esses longos dias de medo, desencanto, luto e que, de certa forma, me deram um norte, uma esperança, um vislumbre de luz no fim do windows. Se com eles eu puder semear também uma ideia de projeto escolar, de conversa terapêutica ou de apenas um papo entre amigos, ele já terá ganhado muito em importância, porque acredito que todos nós vivemos o momento do reencontro, mas, com o quê? O que nos espera? Que mudanças vamos encontrar no mundo que recomeça? Vamos nos reconhecer e reconhecer o outro? E os que se foram? E os que ficaram? Será possível recuperar a distância entre nós? Será possível voltarmos a conversar pessoalmente? O que teremos pra contar? O que vamos mudar nas nossas vidas?


Não tenho respostas para essas perguntas, mas isso não importa, precisamos fazê-las.

Os textos que vão aqui são pontos de partida para algumas reflexões, foram os modos de usar a literatura que a pandemia me permitiu fazer e que agora divido com vocês. Publicarei um texto por dia, durante seis dias, será meu jeito suave de recomeçar. E tenham certeza de que enquanto escrevo, reflito, me questiono, toda escrita é autorreflexiva.

Os textos do meu manual serão os seguintes, nessa ordem :

1º A Morte de Ivan Ilich, Liev Tolstói, 1886

2º Agora, Agora e mais Agora, ( podcast) Rui Tavares, 2020

3º Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenac, 2019

4º AmarElo, Emicida, 2019

5º Decameron, Giovanni Boccaccio, 1348-1353

6º Instruções, Neil Gaiman, 2013

O post de hoje é sobre o clássico A Morte de Ivan Ilich, de Liev Tolstói. ( 1886)


Vamos partir dessa tela de Gustav Klimt, Morte e Vida, 1916 (Museu Leopold, Viena)

dimensões: 1,78X1,98

Observe-a bem. Há claramente um contraste de cor, à esquerda, no escuro, está a Morte, que olha para as pessoas parecendo sorrir. À direita, bem coloridas, estão pessoas de idades e aspectos bem diferentes, poderíamos dizer que representam a Humanidade. O colorido ocupa a maior parte da tela. Mas como estão as pessoas ali? Todas estão de olhos fechados? Alguém olha pra Morte? Quem? Parece haver um questionamento do tipo " eu?" Parece haver uma possibilidade de diálogo?


Olho bem pra essa tela e penso na personagem de Liev Tolstói, no conto a Morte de Ivan Ilitch. Penso também em nós. Parece que estávamos o tempo todo de olhos fechados para a morte, ignorando-a, vivendo como se estivéssemos dormindo e, então, eis que chega uma Pandemia para nos lembrar de que a morte é nossa única certeza, nossa companheira inseparável.


A notícia da morte de Ivan Ilitch


O conto inicia-se com os colegas de trabalho recebendo a notícia da morte de Ivan. Vemos que já fazem conjecturas a respeito das promoções e trocas de cadeiras que aquela morte acarretaria. Outras considerações dos colegas acerca da condição social da família ou da amolação de terem que visitar a viúva, que vive " horrivelmente longe", eram uma maneira de escamotear o verdadeiro sentimento que cada um ali tecia em relação ao acontecido :

Para além das considerações suscitadas em cada um deles por aquela morte, acerca das transferências e possíveis mudanças no serviço que dela poderiam resultar, a própria morte de um conhecido próximo sempre provocava, como sempre, um sentimento de alegria: quem morreu foi ele, e não eu". Cada um deles pensou ou sentiu " Ora, vejam, ele morreu, mas eu estou vivo"

No mundo burguês , a ideia de morte é cada vez mais afastada do universo dos vivos. Vamos vivendo como se fôssemos eternos, a morte é sempre do outro e é sempre um contratempo.

O colega do escritório mais próximo de Ivan, Piotr Ivánovitch, que havia sido seu colega de faculdade, sentiu-se na obrigação de ir ao velório. O narrador, extremamente crítico das convenções sociais, descreve um Piotr preocupado em não errar na postura e bastante incomodado com o defunto.

Piotr Ivánovitch entrou, como sempre, incerto quanto ao que ali seria preciso fazer. A única coisa que ele sabia, é que em tais casos nunca faz mal uma pessoa benzer-se. Mas não estava inteiramente seguro sobre se, ao fazê-lo devia ou não inclinar-se, e por isso optou por uma solução intermédia: ao entrar no quarto, começou a benzer-se e inclinou-se um pouco./.../ Depois, quando lhe pareceu que esse movimento da mão a benzer-se já durara demasiado tempo, parou e ficou a olhar para o morto. O morto jazia como jazem os mortos. /.../ Estava muito mudado, tinha emagrecido ainda mais desde a última vez que Piotr Ivánovitch o tinha visto, mas, como todos os mortos, o seu rosto estava mais bonito e principalmente mais expressivo do que em vida. /.../ Além disso, nessa expressão havia ainda uma recriminação ou uma advertência despropositada, ou pelo menos não lhe dizia respeito a ele./.../ Qualquer coisa se lhe tornou desagradável e por isso voltou a benzer-se à pressa, demasiada pressa ao que lhe pareceu, não conforme à decência, voltou-se e caminhou para a porta.

Assim que sai do quarto, encontra-se com a viúva muito chorosa, que lhe narra os sofrimentos pelo qual Ivan passara durante três dias , queixa-se de como esse sofrimento afetara seus nervos e depois de inúmeras voltas no assunto, finalmente pergunta-lhe sobre a pensão a receber.

O que ela queria descobrir era como obter dinheiro do tesouro público por motivo da morte do marido. Ela fingia estar a pedir-lhe conselhos acerca da pensão; mas ele via que ela já sabia até dos ínfimos pormenores/.../ o que ela queria descobrir era se não seria possível de algum modo obter ainda mais dinheiro.

É assim , nesse turbilhão de sentimentos, pensamentos e emoções que somos jogados no velório de Ivan Ilitch. Percebemos que esse narrador onisciente está disposto a nos revelar todas as artimanhas escondidas nos cantinhos mais obscuros das nossas mentes para que possamos começar a construir a trama que já está dada de antemão no título do conto e na apresentação das personagens ali no velório. Mas quem foi esse homem? O que ele fez da vida? Como foi sua morte?

A vida de Ivan Ilitch

Vamos encontrar o resumo da vida de Ivan nos dois capítulos seguintes, que começa assim:

A história passada da vida de Ivan Ilitch fora a mais simples e vulgar e por isso a mais horrível.

E assim vamos conhecendo quem foi, como viveu, em que se formou, onde trabalhou, por que se casou com Praskóvia Fiódorovna, como era esse casamento, quanto de sua vida ele entregava ao tempo livre, quanto entregava ao trabalho, seu tédio familiar, a criação e o convívio com os filhos, sua ambição em ser bem visto socialmente. Ivan Ilich, 45 anos, é um magistrado bem sucedido, casado, com sua vida muito bem resolvida. Nas horas vagas, dedica-se à decoração de sua casa recém- adquirida, uma casa aristocrática, como deveria ser a casa de um magistrado de São Petersburgo.

Um dia, ao tentar pendurar uma cortina, cai da escada e a partir daí fica doente. A doença e a morte, verdadeiras protagonistas do livro, ocupam os nove capítulos restantes. Para descobrir a causa de suas dores, consulta-se com inúmeros especialistas, que o levam a refletir sobre a postura arrogante dos médicos _ que ele compara muitas vezes à sua própria postura como juiz _ preocupados apenas em diagnosticar a doença, sem dar a mínima atenção para o doente.

"as batidas no paciente, a auscultação, as perguntas que exigiam respostas formuladas de antemão e, ao que parece, desnecessárias, a expressão significativa, que sugeria o seguinte: basta que você se submeta a nós, e haveremos de arranjar tudo, sabemos sem nenhuma dúvida como arranjá-lo."

É impressionante a atualidade desse texto! Três meses depois do tombo, se encontra finalmente com a morte, a Indesejada das gentes, como diria Manuel Bandeira .

Durante o tempo em que ficou em sofrimento vai colocando sua vida em perspectiva e compreende que a desperdiçara buscando ascensão social, entregando-se ao trabalho para fugir de relações autênticas com sua família e agora está sem amigos e sem tempo para reverter essa situação. As únicas satisfações reais que ele identificava em sua vida estavam na infância, no tempo da inocência.

“Quanto mais se afastava da infância e se aproximava do presente, mais insignificantes, mais duvidosas eram as alegrias.

Inicialmente tenta negar-se à entrega, recusa a morte, acha-a injusta, inaceitável, afinal ele criara regras para sua vida a fim de sentir-se seguro e tranquilo, criara mecanismos de defesa que julgava controlar, era respeitado, tinha uma bela casa, mulher e filhos, acesso a bons médicos.

“Não existirei mais e então o que virá? Não haverá nada. Onde estarei quando não existir mais? Será isso morrer? Não. eu não vou aceitar isso!' Levantou-se e tentou acender a vela com as mãos trêmulas. Deixou cair a vela e castiçal no chão e atirou-se outra vez à cama. 'De que adianta? Que diferença faz?', perguntava-se fixando, com olhos arregalados, a escuridão. 'Morte. Sim, morte. E nenhum deles entende, ou quer entender. E não sentem pena nenhuma de mim. Estão todos se divertindo.”

À medida que a proximidade com o fim aumenta, a personagem reflete poderosamente sobre o sentido da vida, compreende que não há negociação com a morte, ela é indiferente a tudo, é o ponto final.

Esse conto foi muito lido nesses dois anos de pandemia, vi muitos comentários sobre ele nos meus grupos. E daí vem minha primeira pergunta. E nós? Se fizéssemos uma projeção de nossas vidas na situação de Ivan Ilitch, como veríamos nossas vidas ao olharmos pra trás? Vamos continuar de olhos fechados , indiferentes à morte que nos espreita, como na tela de Klimt? Ou vamos olhá-la nos olhos e conversar com ela, chamá-la pra uma conversa franca acerca do sentido da vida?


Se quiser saber mais sobre o autor desse maravilhoso conto, deixo uma breve biografia. Mas já adianto que a biografia de Liev Tolstói daria um belo romance!


Quem foi Liev Tolstói
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Deixo também uma reflexão sobre a morte, feita por Gilberto Gil, no álbum Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo, de 2012. Nessa canção, ouvimos o bater do coração à medida que o poeta vai tecendo considerações a respeito da morte. Belíssimo!


Obs: A edição do conto de Tolstói usada por mim foi da LeYa, SA, trad. António Pescada,2008, Alfragide, Portugal _ versão para Kindle.








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