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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Niketche, a dança da criação

Atualizado: 22 de dez. de 2022

Niketche, uma história de poligamia, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, é a obra escolhida pela UERJ para a prova de acesso ao vestibular 2023. Nesse post, vamos fazer uma leitura do romance e procurar levantar possíveis questões ligadas ao programa de Língua e Literatura exigidas pela Universidade Estadual do Rio.

Inicialmente convido vocês a ouvir Paulina Chiziane por ela mesma :

Ela foi a vencedora do Prêmio Camões 2021 e eleita a Personalidade do ano da Lusofonia pelos jornalistas da Agência Lusa de notícias . Seu livro Niketche (2002) venceu em 2003 o Prêmio José Craveirinha em Moçambique. Foi a primeira mulher escritora daquele país, ao publicar seu 1º livro em 1990. Além de Moçambique, Portugal e Brasil, tem obras publicadas em França, Itália, Alemanha, Espanha e Estados Unidos. No entanto, a escritora recusa-se a ser chamada de romancista, prefere ser conhecida como uma contadora de histórias

" O que tentei escrever nos diferentes livros é parte da nossa memória coletiva. Portanto, nunca falei na minha voz pessoal; mesmo nos livros em que escrevo na primeira pessoa, estou a trazer a voz coletiva.”

Uma história de poligamia

O livro se inicia com um estrondo, um abalo, e logo somos jogados no universo de Rami, a narradora , casada . Percebemos o estado interior bastante conflituoso em que se encontra a partir da seleção vocabular ligada à guerra :

Um estrondo ouve-se do lado de lá. Uma bomba. Mina antipessoal. Deve ser a guerra a regressar outra vez. Penso em esconder-me. Em fugir. O estrondo espanta os pássaros que voam para a segurança das alturas. Não. Não deve ser o projéctil de uma bala. Talvez sejam dois carros em colisão pela estrada fora. Lanço os olhos curiosos para a estrada. Não vejo nada. Apenas silêncio. Sinto um tremor ligeiro dentro do peito e fico imóvel por uns instantes.

Esse estado de tensão é desencadeado por um incidente quase banal : seu filho acaba de quebrar os vidros de um carro. No entanto, descobrimos que a verdadeira causa de todo esse conflito interior é seu marido, Tony, que passa dias fora de casa, ausente da educação dos filhos, da administração da casa, ausente da vida de Rami.

É na busca pelo marido, impelida pelo ciúme, pelo desprezo e pela enorme solidão que Rami vai empreender uma verdadeira busca pelo autoconhecimento. Inicialmente tenta resolver sozinha o problema da infidelidade de seu homem . Vai a curandeiras, frequenta seitas, tenta se arrumar, toma banhos de sangue de galinha, de leite, banha-se no rio em nome do Espírito Santo, mas tudo resulta inútil. Resolve, então procurar a amante e ter com ela uma discussão a respeito de seus direitos matrimoniais. Xinga-a, brigam, apanha. Exausta, resolve dialogar com aquela outra e descobre que ela também já fora trocada , sente-se vingada momentaneamente, mas logo em seguida resolve ir atrás dessa terceira e a história se repete. Discute com cada mulher do marido e descobre dele uma nova faceta, novos filhos e mais traição. Como se estivesse diante de um espelho paralelo, as imagens se sucedem infinitamente. Nessa busca ela encontra-se a si mesma, encontra Tony, suas amantes, outras mulheres, outras vozes, culturas e possibilidades de organização social e familiar e nos leva por Moçambique a ouvir histórias, lendas e mitos de criação do mundo.


A LINGUAGEM DO TEXTO

1. A metáfora do espelho

João Timane, pintor

Essa metáfora condiciona toda a narrativa de Niketche. A narrativa especular permite ao leitor enxergar narrativas dentro de narrativas, num espelho multifacetado que se desdobra em vários planos e níveis de significação. É especulação quando Rami se interroga pela primeira vez diante do espelho em busca de si mesma e se vê naquela imagem invertida e menor:

Vou ao espelho tentar descobrir o que há de errado em mim. Vejo olheiras negras no meu rosto, meu Deus, grandes olheiras! Tenho andado a chorar muito por estes dias, choro até de mais. Olho bem para a minha imagem. Com esta máscara de tristeza, pareço um fantasma, essa aí não sou eu

O espelho inverte as perguntas que recebe, suas respostas são negativas, a Rami refletida ora parece um fantasma, ora é uma Rami há muito perdida, uma mulher que encanta, que dança.

Paro de chorar e volto ao espelho. Os olhos que se reflectem brilham como diamantes. É o rosto de uma mulher feliz. Os lábios que se reflectem traduzem uma mensagem de felicidade, não, não podem ser os meus, eu não sorrio, eu choro. Meu Deus, o meu espelho foi invadido por uma intrusa, que se ri da minha desgraça. /.../ De quem será esta imagem que me hipnotiza e me encanta? — Quem és tu? — pergunto eu. /.../ —Estás cega, gémea minha. Por que choras tu? Solto da boca uma enxurrada de lamentos. Conto toda a tristeza e digo que as mulheres deste mundo me roubam o marido. — Pode-se roubar uma pessoa viva, ainda por cima um comandante da polícia? — Um marido rouba-se, nesta terra. /.../ Entro em pânico. Enquanto eu soluço a imagem dança. Paro de soluçar e fico em silêncio para escutar a canção mágica desta dança. É o meu silêncio que escuto. E o meu silêncio dança, fazendo dançar o meu ciúme, a minha solidão, a minha mágoa. A minha cabeça também entra na dança, sinto vertigens. Estarei eu a enlouquecer? — Por que danças tu, espelho meu? — Celebro o amor e a vida. Danço sobre a vida e a morte. Danço sobre a tristeza e a solidão. Piso para o fundo da terra todos os males que me torturam. A dança liberta a mente das preocupações do momento. A dança é uma prece. Na dança celebro a vida enquanto aguardo a morte. Por que é que não danças? Dançar. Dançar a derrota do meu adversário. Dançar na festa do meu aniversário. Dançar sobre a coragem do inimigo. Dançar no funeral do ente querido. Dançar à volta da fogueira na véspera do grande combate. Dançar é orar. Eu também quero dançar. A vida é uma grande dança.

Já aqui percebemos uma antecipação do enredo, com destaque ao ponto central da narrativa que será desvendada mais tarde, a dança do Niketche A dança é parte indissociável da moçambicanidade, mas no romance a dança será muito mais que isso, será resistência, será o elemento decisivo na vitória das mulheres sobre Tony. No entanto, o espelho, um objeto frio e intransponível , nega a possibilidade da dança solidária.

Tento, com a minha mão, segurar a mão da minha companheira, para ir com ela na dança. Ela também me oferece a mão, mas não me consegue levar. Entre nós há uma barreira fria, gelada, vidrada. Fico angustiada e olho bem para ela. Aqueles olhos alegres têm os meus traços. As linhas do corpo fazem lembrar as minhas. Aquela força interior me faz lembrar a força que tive e perdi. Esta imagem não sou eu, mas aquilo que fui e queria voltar a ser. Esta imagem sou eu, sim, numa outra dimensão. Tento beijar-lhe o rosto. Não a alcanço. Beijo-lhe então a boca, e o beijo sabe a gelo e vidro. Ah, meu espelho confidente. Ah. meu espelho estranho. Espelho revelador. Vivemos juntos desde que me casei. Porque só hoje me revelas o teu poder?

Rami percebe que sozinha, apenas dançando consigo mesma, seria impossível sair daquele estado de absoluta solidão . É a partir dessa constatação que a protagonista resolve ir atrás da mulher que roubou o seu marido. Vai atrás de Julieta, brigam , ferem-se, conversam e descobrem que há uma terceira mulher. Experimentam profunda empatia.

João Timane, O abraço da esperança

Abraço-a. Conheço a amargura deste choro e o calor deste fogo. Emociono-me. Solidarizo-me. /.../ Depois embalo-a. Sofro com ela. Coitada, ela é mais uma vítima do que uma rival. Foi caçada e traída como eu. — Estamos juntas nesta tragédia. Eu, tu, todas as mulheres.

Logo após esse encontro em que as duas rivais se reconhecem no espelho da empatia, Rami decide procurar uma conselheira que lhe dará aulas de amor. Essas aulas a prepararão para os encontros futuros com as outras rivais.

Chego à aula, com uma pontualidade religiosa. A minha conselheira de amor espera-me, sentada num grande sofá de veludo. Saúda-me com uma voz altiva, segura, dengosa, lá do seu altar de rainha. Ela diz: pons tias. Poas vintas. Acrateço a sua breferencia bor esda escola. Troca o b por p. Troca o d por t, ela é do norte, é macua esta minha conselheira de amor. Não rio, sorrio e retribuo a saudação. Bom dia, e obrigada por me aceitar como sua aluna.

Nesse ponto, ocorre um segundo espelhamento que vai se repetir durante toda a narrativa: as diferenças socioculturais entre o Norte e o Sul mostrarão o país refletido no espelho patriarcal. E o interessante é que essas contradições ocorrem principalmente no corpo

feminino, como veremos mais tarde.

Mulher macua com mussiro e capulana

Ela distingue uma mulher feliz e uma mulher insatisfeita com um simples relance da vista. Veste uma enorme túnica, de amarelo-dourado. Na cabeça pende um turbante colocado com arte como uma coroa de rainha. Ela usa ouro, muito ouro. /.../Falamos de tradições e de culturas. E conta-me histórias de amor à macua. De namoros na sua aldeia. Dos ritos de passagem. — Como foi a preparação do teu casamento? — Comecei a fazer enxoval aos quinze anos — explico. Bordar naperons. Fiz colchas e toalhas em croché. Toalhas bordadas, com o ponto pé de flor, ponto pé de galo, ponto de cruz, ponto jugoslavo, ponto grilhão. Fiz curso de cozinha e tricô. — Cresci no campo e não conheci nada dessas coisas de bordados e enxovais. Diz-me, como foi a preparação nas vésperas do casamento? — Tinha aulas na igreja, com os padres e as freiras. Acendi muitas velas e fiz muitas rezas. — E o que te ensinava a tua família? — Falava-me da obediência, da maternidade. —E do amor sexual? — Nunca ninguém me disse nada. — Então não és mulher — diz-me com desdém —, és ainda criança. Como queres tu ser feliz no casamento, se a vida a dois é feita de amor e sexo e nada te ensinaram sobre a matéria? Olhei-a com surpresa. De repente lembro-me de uma frase famosa — ninguém nasce mulher, torna-se mulher. Onde terei eu ouvido esta frase?

É interessantíssima a apresentação da conselheira, desde a sua linguagem até as diferenças culturais entre o Sul, de herança colonial cristã e o Norte, tribal, agrícola. "As culturas são fronteiras invisíveis construindo a fortaleza do mundo" reflete a narradora em determinado momento.

Moçambique é um país muito recente, ainda em construção e sob constante ameaça de guerra. Viveu 10 anos de luta pela independência e quase 20 anos de Guerra Civil. É um país cercado por falantes anglófonos e sofre constante assédio de países de religião islâmica nas fronteiras ao norte. Tem em seu território 20 línguas maternas. O Português não é usado como língua de comunicação e sim como língua de unidade nacional. É obrigatório nas instituições públicas e na educação formal, mas apenas 2% da população têm o Português como língua materna.

O Sul é mais industrializado, centro financeiro, corporativo e mercantil, mais cosmopolita, com escolas industriais e uma universidade, poderíamos dizer, mais ocidentalizado. O Norte, tribal, agrário e riquíssimo em recursos minerais _ o que acende a cobiça capitalista e relega a população à violência e pobreza _ foi refratário à colonização. Dali partiu o movimento anticolonial, liderado pela FRELIMO, ( Frente de Libertação de Moçambique) que, após 10 anos de luta armada, negociou a independência com Portugal, tornando-se um partido político de tendência marxista. No entanto, assim que assume o governo do país, iniciam-se insurgências, a principal delas vem de uma facção anticomunista conhecida como RENAMO, apoiada pelo governo da África do Sul . Foram mais 16 anos de guerra civil, com alguns momentos de trégua e hoje percebe-se naquele país uma democracia bem jovem, ainda frágil, com enormes desigualdades e desafios a serem superados. Norte e Sul são duplos antagônicos em busca de uma síntese.

E o que isso tem a ver com nossa história?

Rami é uma mulher do Sul e resiste, como já vimos, a aceitar determinadas colocações da conselheira, principalmente as relacionadas à existência da poligamia:

Em algumas regiões do norte de Moçambique, o amor é feito de partilhas. Partilha-se mulher com o amigo, com o visitante nobre, com o irmão de circuncisão. Esposa é água que se serve ao caminhante, ao visitante. /.../ Uma só família pode ser um mosaico de cores e raças de acordo com o tipo de visitas que a família tem, porque mulher é fertilidade. É por isso que em muitas regiões os filhos recebem o apelido da mãe. Na reprodução humana, só a mãe é certa. No sul, a situação é bem outra. Só se entrega a mulher ao irmão de sangue ou de circuncisão quando o homem é estéril. Nas práticas primitivas, solidariedade é partilhar pão, manta e sémen. Sou do tempo moderno. Prefiro dar a minha vida e o meu sangue a quem deles precisa. Posso dar tudo, mas o meu homem não. Ele não é pão nem pastel. Não o partilho, sou egoísta.

Mas isso não a impede de abrir-se a um questionamento a respeito da opressão que o patriarcado impõe às mulheres, chega a sentir-se traída por sua própria cultura. É interessante perceber esse desdobramento da voz da personagem na voz da narradora que, ao fazer uma pausa na ação, faz reflexões pontuais, distancia-se com comentários e depois retoma a condução da narrativa.

Navego numa viagem ao tempo. Haréns com duas mil esposas. Régulos com quarenta mulheres. Esposas prometidas antes do nascimento. Contratos sociais. Alianças. Prostíbulos. Casamentos de conveniência. Venda das filhas para aumentar a fortuna dos pais e pagar dívidas de jogo. Escravatura sexual. Casamentos aos doze anos. Corro a memória para o princípio dos princípios. No paraíso dos bantu, Deus criou um Adão. Várias Evas e um harém. Quem escreveu a bíblia omitiu alguns factos sobre a gênese da poligamia. Os bantu deviam reescrever a sua Bíblia.

Das inúmeras lições recebidas da conselheira macua, aquela relacionada ao papel masculino dos homens do norte a impressiona mais.

Ela explica-me a primeira lição da iniciação masculina: — A primeira filosofia é: trata a mulher como a tua própria mãe. No momento em que fechares os olhos e mergulhares no seu voo, ela se transforma na tua criadora, a verdadeira mãe de todo o universo. Toda a mulher é a personificação da mãe, quer seja a esposa, a concubina, até mesmo uma mulher de programa. O homem deve agradecer a Deus toda a cor e luz que a mulher dá, porque sem ela a vida não existiria. Um homem de verdade não bate na sua mãe, na sua deusa, na sua criadora. — Mas isso é no norte — recordo —, eu sou daqui, do sul. De tudo o que hoje aprendi, gostei mais desta lição. Porque o casamento deve ser uma relação sem guerra. Porque levei muita sova nesta vida. Porque um lar de harmonia se constrói sem violência. Porque quem bate na sua mulher destrói o seu próprio amor.

A partir daquelas lições de amor, Rami vai se conhecendo melhor como mulher , vai tomando consciência de seu papel no mundo. Ao conhecer ritos e tradições negadas pela educação cristã colonial do sul, percebe que fora enganada, que a ela foram negados conhecimentos importantes do norte. Ao refletir sobre as diferenças entre os casamentos nas duas regiões, pôde perceber que tanto o lobolo*, no sul, quanto os ritos de iniciação no norte são instituições fortíssimas que resistiram ao cristianismo e ao islamismo, ao colonialismo e aos revolucionários e essa resistência se deve à alma do povo, um povo que se afirma perante o mundo e mostra que quer viver do seu jeito. Mas esse conhecimento não a impede de apontar a tensão entre a tradição moçambicana e as imposições coloniais nem de observar que ora a opressão da mulher vem da herança colonial, ora vem das leis e costumes tribais e que a mulher, portanto, está oprimida pelos dois lados. Não há negociação, há denúncia

Ela insiste no princípio de agradar ao homem. — Se queres um homem prenda-o na cozinha e na cama — diz ela. — Há comidas masculinas e femininas. Na galinha, as mulheres comem as patas, as asas e o pescoço. Aos homens servem-se as coxas de frangos. A moela. /.../ —Não é possível! No sul também é assim. Essa tradição devia ser combatida. — Desafiar? Mudar? Para quê? Cá por mim devia ser mantida, porque é uma boa isca. Um homem vence-se pela sua gula. Se queres fazer uma magia de amor, faça-a naquilo que eles mais gostam. A moela. Sobe-me aos lábios um sorriso irónico. Em matéria de comida, não há norte nem sul. Todos os homens são gulosos e inventam mitos só nas carnes, peixes e ovos. Os homens são todos iguais. Rimo-nos com gosto.

Rami, como a mirar-se num espelho paralelo, daqueles que refletem imagens ao infinito, vai conhecer as outras três amantes de seu marido e a história vai se repetindo, espelhando-a e também espelhando o país naquelas mulheres, já que cada uma delas é de um lugar de Moçambique**, cada uma de uma etnia diferente, portadoras de línguas e costumes diferentes. Nesse espelhamento temos a tradição X modernidade, oralidade X escrita, cristianismo X cultos ancestrais, patriarcado X matriarcado. Cada uma daquelas mulheres carrega em seu corpo a história do país, das guerras, de luta contra o sistema patriarcal .

Mas nós já somos uma variação, em línguas, em hábitos, em culturas. Somos uma amostra de norte a sul, o país inteiro nas mãos de um só homem. Em matéria de amor, o Tony simboliza a unidade nacional.

Paulina Chiziane explora a consciência da cisão do país a partir dos universos culturais que se refletem na experiência de vida das personagens.

João Timane, Um Moçambique próspero

2. Polifonia

O romance é polifônico, percebemos a coexistência de várias vozes num texto de gênero híbrido, em que as formas tradicionais de contar mesclam-se a recursos narrativos típicos do romance. Rami divide o marido e a palavra, sendo transmissora do discurso do outro (a). Há múltiplos narradores a quem a protagonista dá a palavra: além das quatro mulheres, a palavra é dada à mãe, à sogra, às mulheres da feira, à conselheira e à tia. A narradora se desdobra concomitantemente em narrador- personagem _ Rami_ em um narrador autorreflexivo que estabelece diálogo com textos bíblicos, parábolas, cria enigmas, antecipa ou comenta a própria narrativa e um narrador nós, dialógico, que generaliza a experiência incluindo todas as mulheres e que dialoga com o leitor/ouvinte, inserindo-o no texto, muitas vezes utilizando também perguntas retóricas. Observe a presença desses narradores no trecho abaixo, quando a protagonista descobre na fala das rivais que o atributo mais desejado de seu marido é o fato de ele ter dinheiro:

O mundo acha que as mulheres são interesseiras. E os homens não são? Todo o homem exige da mulher um atributo fundamental: beleza. As mulheres exigem dos homens outro atributo: dinheiro. Qual é a diferença? Só os homens podem exigir e as mulheres não?/.../ Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa — sua esposa — intercederia por nós. Através dela pediríamos a bênção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.

Na busca em compreender a traição do marido e a poligamia , além de transcrever os diálogos com as mulheres, dar a elas a palavra, permitir que contem suas próprias histórias, insere pequenas narrativas dentro da história principal, como a tragédia da moela que pôs fim à vida de sua tia, contada por sua mãe ou a história da mulher que abandona o marido no hospital, cena que a protagonista presencia e que mais tarde se repetirá com ela e Tony, e em três momentos lança mão da expressão " Era uma vez" , muito comum no início de lendas e narrativas orais, como a lenda de Vuyazi . São recursos da tradição oral que surge reinventada dentro do texto literário escrito na língua do colonizador, criando uma expressividade única e que vão nos permitindo conhecer um pouco do que se convencionou chamar de moçambicanidade.

Malangatana, olhares vermelhos

2.1 Mulher e sororidade : a dança do Niketche

Percebendo ser impossível lutar contra a poligamia de Tony, Rami decide-se por obrigá-lo a formalizá-la, a reconhecer as mulheres perante sua família, dar status de esposas a elas e reconhecer legalmente seus filhos. Valendo-se da posição de primeira esposa, ela tem que consentir, aprovar a escolhida e ser a responsável pelos arranjos práticos: o rodízio do marido, as obrigações que cada uma delas deveria assumir enquanto estivesse com ele e as obrigações que, como pai e marido, Tony deveria assumir com cada uma delas. Nesse percurso, vamos vendo crescer a consciência feminista de Rami, a sororidade entre as mulheres ao mesmo tempo em que a figura masculina se torna cada vez menor. Tony vai sendo apequenado, as mulheres unidas vão tomando conta da situação e , como matriarca daquele novo arranjo familiar, Rami passa a estimular-lhes a independência financeira e a financiar seus próprios negócios. Não há fórmula mágica. Quando as mulheres percebem que têm autonomia financeira, cuidar de um homem deixa de ser atrativo. Ao pegarem uma nova traição de Tony, convocam-no para uma reunião e decidem confrontá-lo com seus corpos nus, todas juntas, dançando o Niketche**. Diferentemente da dança solitária e impossível com o espelho, no 1º capítulo, agora a dança é solidária, tem poder. Cinco mulheres nuas dançam num ato de rebeldia e humilham o homem, que chora apavorado.

Somos cinco contra um. Cinco fraquezas juntas se tornam força em demasia. Mulheres desamadas são mais mortíferas que as cobras pretas. /.../Achamos a ideia genial e entramos no jogo. Era preciso mostrar ao Tony o que valem cinco mulheres juntas. Entramos no quarto e arrastamos o Tony que resistia como um bode. Despimo-nos, em striptease. Ele olha para nós. Os seus joelhos ganham um tremor ligeiro. /.../ O Tony leva as mãos à cabeça e depois ao rosto para esconder os olhos e gritar: — Meu Deus! Por favor, parem com isso, por Deus, que azar é este que me dão agora?! Lança um olhar assustado. Nenhuma de nós imagina as sensações, as complicações e as confusões que são geradas por este acto. Ele contém a respiração, fingindo sorrir. Faz um esforço para mostrar a superioridade de um vaqueiro diante da manada./.../ Que pode um homem fazer com cinco mulheres? Entra num violento silêncio. O mundo acaba de lhe cair nos ombros. Nudez de mulher é mau agouro mesmo que seja de uma só esposa, no acto da zanga. É protesto extremo, protesto de todos os protestos. É pior que cruzar com um leão faminto na savana distante. É pior que o deflagrar de uma bomba atómica. Dá azar. Provoca cegueira. Paralisa. Mata.

São inúmeras as passagens do texto que vão mostrar a crítica ao patriarcado e denunciar a opressão da mulher, pois é no corpo feminino que a opressão se dá, é esse corpo nu que grita liberdade, que amedronta mas é também esse corpo que gesta a esperança. No fim do romance Rami está grávida, há todo um simbolismo nessa gravidez, há um apontamento para o futuro, para o sonho, para a afirmação da vida sobre a morte e, principalmente, para a possibilidade de REcriação das meninas e dos meninos numa nova sociedade, mais justa e mais igualitária.

Juntas celebramos o porvir e juramos: a partir de hoje, caminharemos na marcha de todas as mulheres desprotegidas pela sorte, multiplicaremos a força dos nossos braços e seremos heroínas tombando na batalha do pão de cada dia. A cantar e a dançar, construiremos escolas com alicerces de pedra, onde aprenderemos a escrever e a ler as linhas do nosso destino. Atravessaremos o mar com a nau dos nossos olhos porque saberemos navegar até ao além-mar e levaremos a mensagem de solidariedade e fraternidade às mulheres dos quatro cantos do mundo. Ensinaremos aos homens a beleza das coisas proibidas: o prazer do choro, o paladar das asas e patas de galinha, a beleza da paternidade, a magia do ritmo do pilão a moer o grão. Amanhã, o mundo será mais natural, e os nossos bebés, tanto meninas como rapazes, terão quatro anos de mamada. Na hora de nascer, as meninas serão também recebidas com cinco salvas de tambor, no tecto do lar paterno e na sombra da árvore dos seus antepassados. Marcharemos ao lado dos homens, como soldados fardados de suor e lama, na machamba, na mina, na fábrica, na construção, e levaremos um beijo de mel à boca de cada criança. Seremos mais ricas de pão e de paixão. Olharemos para os homens com amor verdadeiro e não para as cifras das notas de banco que pendem nos bolsos da calças. Ao lado dos nossos namorados, maridos e amantes, dançaremos de vitória em vitória no niketche da vida.

3. Intertextualidade

Há inúmeros exemplos de intertextualidade no romance, as principais são relativas ao conto da Branca de Neve, à história de Alice através do espelho e à Bíblia . A paródia é o recurso intertextual mais utilizado no romance.

Branca de Neve : Como já vimos, a relação especular entre Rami e seu "espelho mágico" é frequente praticamente em toda a narrativa e nos remete ao conto infantil. No entanto, a narradora inverte o papel do espelho. No conto infantil, o espelho é passivo e a rainha se preocupa apenas com sua aparência física, já em Niketche o espelho é ativo e a busca de Rami é pelo autoconhecimento. A intertextualidade se dá, não só em relação à citação do mote " espelho, espelho meu", mas também no uso formal da linguagem, porém há uma mudança interessante aí : O vós, tratamento formal em relação à rainha, dá lugar ao Tu, segunda pessoa do discurso, revelando uma relação de igual pra igual entre o espelho e Rami, tratada de " gêmea minha".

Alice através do espelho : Aqui a intertextualidade é mais sutil e ocorre na possibilidade de passar para o outro lado do espelho, que seria uma espécie de portal do patriarcado. Ao atravessá-lo, Rami mergulha no poço sem fundo das outras mulheres, da cultura de seu país, do mundo poligâmico e ao mesmo tempo em que cai, como Alice, lentamente parece nele flutuar. Chega ao fundo no episódio da morte simbólica do marido, com sua casa vazia, sozinha, ali já não lhe resta nada mais a não ser emergir, no entanto, ela já é outra mulher.

Bíblia: São inúmeras as conexões com o texto bíblico, a aproximação se dá principalmente pela paródia, com a intenção de instaurar a reflexão a respeito da invisibilidade feminina desde os tempos mais remotos. Essa oração é uma pérola:

Madre nossa que estais no céu, santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino—das mulheres, claro —, venha a nós a tua benevolência, não queremos mais a violência. Sejam ouvidos os nossos apelos, assim na terra como no céu. A paz nossa de cada dia nos dai hoje e perdoai as nossas ofensas — fofocas, má-língua, bisbilhotices, vaidade, inveja — assim como nós perdoamos a tirania, traição, imoralidades, bebedeiras, insultos, dos nossos maridos, amantes, namorados, companheiros e outras relações que nem sei nomear. Não nos deixeis cair na tentação de imitar as loucuras deles — beber, maltratar, roubar, expulsar, casar e divorciar, violar, escravizar, comprar, usar, abusar e nem nos deixes morrer nas mãos desses tiranos—mas livrai-nos do mal, Ámen. Uma mãe celestial nos dava muito jeito, sem dúvida alguma.

Além dessa referência explícita, temos o questionamento da inexistência de deusas no texto bíblico, a afirmação de que o único homem que não foi polígono foi Adão, referências à poligamia no Antigo Testamento e na tradição Bantu, além da inversão da figura de Eva, a mulher bíblica primordial, que no romance é uma mulher estéril e separada do marido. Esses são elementos que subvertem tanto os cânones sagrados da cultura ocidental, quanto os da moçambicanidade .

Se a poligamia é natureza e destino, por favor, meu Deus, manda um novo Moisés escrever a nova bíblia com um Adão e tantas Evas como as estrelas do céu. Manda pôr umas Evas que pilam, esfregam, cozinham, massajam e lavam os pés de Adão, assim em turnos. Não vale a pena escrever nada sobre o amor e o pecado./.../ Pode falar dos castigos, das dores, do sofrimento, que essa linguagem as mulheres conhecem bem. Não fale da maçã, que cá não existe. Fale antes da banana, que faz mais sentido nesta história. Ou então do caju, se a banana não dá. Serpentes há muitas, só que as nossas não falam, neste éden tropical. E tu, meu Deus, nós te pedimos: Liberta a deusa — se é que existe — para mostrar o rosto só por um segundo. Ela deve estar cansada de preparar tanto vinho, tanta hóstia aí na cozinha celestial, desde o princípio do mundo. Se não existe nenhuma deusa —meu Deus, perdoa-me —, com tantas mulheres que o mundo tem por que não fica com umas tantas dúzias? Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.

citação de Simone de Beauvoir com a frase "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", buscando referências ao feminismo também no mundo ocidentalizado. Em outra passagem, observamos a reformulação da lenda de Ícaro, texto clássico da literatura ocidental, ao se referir a Tony, completamente abandonado por suas cinco mulheres :

Era de barro o teu bico de abutre e se desgastava em cada bicada. Nasceste homem mas puseram-te asas de cera, voavas para os teus castelos, derreteu a cera, caíste em terra e quebraste o focinho como um ovo de galinha.

4. A prosa poética

O romance Niketche apresenta uma escrita bastante imagética e musical. Há inúmeras características presentes na obra que possibilitam a criação dessa atmosfera lírica , ao mesmo tempo em que resgata a prática milenar da contação de histórias.

4.1 Musicalidade:

A musicalidade é um recurso muito comum em textos poéticos e de tradição oral, pois facilitam a memorização. Paulina Chiziane fala três línguas maternas, o chope, por parte de mãe, o xítsua por parte de pai e o ronga, com os amigos. E escreve _ ela diz que traduz suas histórias_ em Português. Logo, percebemos que a musicalidade dessas línguas são transpostas para o texto de Niketche sob a forma de rimas em prosa, repetições melódicas como aliterações e assonâncias, sussurros, balbucios e pontuação expressiva, que vão criando um mundo de sensações. Há inúmeros exemplos de musicalidade, transcrevo dois:

Como é que o Tony me despreza assim, se não tenho nada de errado em mim? Obedecer, sempre obedeci. As suas vontades sempre fiz. Dele sempre cuidei. Até as suas loucuras suportei.
As ondas de som sobem de tom e serpenteiam no céu como cavalos selvagens. Esperanças, forças e alegrias brotam do suave canto e caem sobre a terra num dilúvio de flores. A minha dor se transforma em alegria, num lance de magia. O verso da canção sobe aos meus lábios. Titubeio. E a canção solta-se da garganta como um projéctil. Por que choro eu, se ninguém morreu?

4.2 Linguagem figurada

Já vimos que a metáfora do espelho condiciona toda a narrativa, mas não é a única. As metáforas e comparações relativas à mulher percorrem todo o romance. Mulheres são espelho, terra, objeto sexual, universo, natureza.

Mulher é tronco de salvação para as vítimas de todos os naufrágios. Mulher é ciclo da natureza. Perfeito. Completo. /.../ O coração do universo inteiro palpita no ventre de uma mulher. Toda a mulher é terra, que se pisa, que se escava, que se semeia. Que se fere com pisadas, com pancadas, com socos e pontapés. Que se fertiliza. Que se infertiliza. A mulher é a primeira morada. A última morada.

Mas mulher também pode ser metonímia do país, o corpo da nação matriarcal, que dá origem a um mosaico multifacetado de culturas e etnias, essa construção metonímica aparece bem claramente nessa passagem:

Há dias conheci uma mulher do interior da Zambézia. Tem cinco filhos, já crescidos. O primeiro, um mulato esbelto, é dos portugueses que a violaram durante a guerra colonial. O segundo, um preto, elegante e forte como um guerreiro, é fruto de outra violação dos guerrilheiros de libertação da mesma guerra colonial. O terceiro, outro mulato, mimoso como um gato, é dos comandos rodesianos brancos, que arrasaram esta terra para aniquilar as bases dos guerrilheiros do Zimbabwe. O quarto é dos rebeldes que fizeram a guerra civil no interior do país. A primeira e a segunda vez foi violada, mas à terceira e à quarta entregou-se de livre vontade, porque se sentia especializada em violação sexual. O quinto é de um homem com quem se deitou por amor pela primeira vez. Essa mulher carregou a história de todas as guerras do país num só ventre./.../ Os meus quatro filhos sem pai nem apelido são filhos dos deuses do fogo, filhos da história, nascidos pelo poder dos braços armados com metralhadoras. A minha felicidade foi ter gerado só homens, diz ela, nenhum deles conhecerá a dor da violação sexual.

A personificação também é muito frequente no livro.

Oh, mãe África, mãe nua! Como pode a nudez das tuas filhas ser mais escandalosa que a tua, mãe África?

Um momento muito interessante é quando a narradora, tentando compreender a natureza do feminino, personifica a vagina e vai aos poucos passando da personificação para a metonímia, numa clara substituição de vagina < mulher. O fato de que ela não nomeia o órgão sexual, utilizando a pontuação expressiva ... evidencia o tabu existente na simples nomeação dessa parte do corpo feminino.

E a linguagem da...? Se a... pudesse falar que mensagem nos diria? De certeza ela cantaria belos poemas de dor e de saudade. Cantaria cantigas de amor e de abandono. Da violência. De violação. Da castração. Da manipulação. Ela nos diria por que chora lágrimas de sangue em cada ciclo. Dir-nos-ia a história da primeira vez. No leito nupcial. Na mata. Em baixo dos cajueiros. No banco de trás do carro. No gabinete do Senhor Director. À beira-mar. Nos lugares mais incríveis do planeta. Ah, se as ... pudessem falar!

A ironia, muitas vezes aliada à paródia, também perpassa todo o texto, tanto nas críticas à religião dos colonizadores, quanto no tratamento que dá ao marido, principalmente quando começa a desconstruí-lo, eis alguns exemplos:

"A gula desmedida gerou congestão de amor no estômago pequeno. Pobrezinho!" "— Sim, meu Tony! Só tu me podes coroar rainha de espinhos e dor, porque és o meu homem" "—Tens razão, Tony, as mulheres de hoje já não têm juízo. Por que não te casas com a minha avó?"

A hipérbole também ocorre em vários momentos, aqui deixo um exemplo.

Hoje vou desobedecer pela primeira vez. Não haverá divórcio nenhum. Quer divórcio? Que passe pelo meu cadáver! Cerro os olhos, como diques para estancar o rio de lágrimas que transborda em cascata./.../ Escolhi o casamento como profissão. Na carreira matrimonial a mulher nunca sobe de escala. Desce.

Além da ironia em relação ao casamento, podemos encontrar ainda no trecho um exemplo de antítese sobe/desce

4.3 Variabilidade Linguística

Paulina escreve com a beleza do Português de Moçambique, enriquecido de vocábulos das línguas locais relativos à natureza, à cultura, à flora e fauna. "Eu uso o Português como a minha língua, e não como a língua de Portugal" , afirma a escritora. Há expressões intraduzíveis, ela explica, e dá como exemplo a seguinte passagem :

—Olha só para o meu corpo, mãe. As minhas mamas eram duras e redondas como as massalas, mas agora tornaram-se papaias. Esse é apenas um exemplo da regionalização léxico-semântica do português de Moçambique e que motivou a autora a colocar um glossário no fim do livro a fim de esclarecer alguns termos emprestados das línguas locais.

Em relação a diferenças entre linguagem oral e escrita, já ficou bem evidente que a intenção da autora é escrever como uma contadora e para isso são utilizados inúmeros recursos que reforçam essa oralidade, tais como provérbios clássicos citados Quem não chora não mama, ou ressignificados É melhor um teto rachado que um teto do céu, o uso da pontuação expressiva, de pronomes e de perguntas retóricas que sugerem interlocução Vocês sabem o que dói ser tratada com altivez por quem vos rouba o marido? , além das abundantes exclamações, como Meu Deus!

5.0 Deus é mulher e é negra

Para finalizar, voltemos ao título do livro. Segundo Chiziane, as danças e os batuques, mesmo nas circunstâncias dramáticas, constituem o modo de responder com ânimo às ameaças tremendas da servidão, da violência ou da indiferença. E em Niketche, a autora transforma a tradicional dança de iniciação sexual em texto escrito e o corpo da mulher no corpus de seu romance. A dança que liberta é a mesma que libera a autoria feminina dentro da sociedade, subvertendo o estabelecido, criando novas possibilidades. A voz feminina tem especial importância, por estar sempre próxima às origens. Numa entrevista dada à Fundação Gulbenkian, por ocasião do prêmio Camões, Paulina afirma que há um Deus invisível que dizem ter criado tudo, mas na terra é a mulher que vela pela sobrevivência de todas as espécies. E esse Deus é uma mulher. E é negra, por uma razão muito simples: se o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, então Deus é muito parecido comigo. É negra e é mulher.

João Timane, Cores do prazer

No final do livro vamos encontrar o texto-modelo do livro bíblico do Gênesis sendo recriado., no entanto, o momento da criação ocorre justamente no final da história de Rami e Tony. Aqui vamos perceber toda a estrutura e marcas típicas do livro das origens sendo manipuladas para o momento final , em que Rami, como uma deusa, tem nas mãos a salvação de Tony.

Caminhamos até ao jardim público. No jardim não havia gente. Éramos só nós e as plantas naquele paraíso chuvoso, expondo o fogo dos corpos no frio do mundo. Ficámos abraçados um longo tempo, ouvindo a voz de Deus ordenando trovões, luzes, águas, no acto da criação. Éramos barro fundido num só monte, ele Adão e eu a serpente, à beira do pecado original. Tenta arrancar de mim uma gota de amor, uma palavra de reconciliação. A sua boca ressequida cola-se à minha num beijo divino. Ai, meu Deus, este beijo me enlouquece, me derrete, me transcende, nunca antes me dera um beijo assim. O abraço é forte e pressiona-me o ventre duro como uma pedra, palpitando de vida. — Rami, é um filho? Baixo o olhos. Chegou a minha vez de chorar. —Mas como, se... Não respondo, continuo no meu choro silencioso. — Diz que é meu, diz e salva-me.

Ele implora pela salvação, ela sabe que pode salvá-lo, mas não quer. A resposta vem em forma de uma ironia profunda, irremediável.

Meu Deus, eu sou poderosa, eu sinto que posso salvá-lo desta queda. Tenho nas mãos a fórmula mágica. Dizer sim e resgatá-lo. Dizer não e perdê-lo. Mas eu o perdi muito antes de o encontrar. Ignorou-me muito antes de me conhecer. — Não te posso salvar. Tento salvar-te mas não consigo, não tenho força, sou fraca, não existo, sou mulher. Os homens é que salvam as mulheres e não o contrário.

Rami não o perdoa e salva-se a si mesma. A mulher-deusa, demiurga, que funda mundos e inaugura um outro tempo nega-lhe a salvação. A recusa à manutenção daquele mundo desigual é absoluta. Tony fica ali, só, um super-homem calcificado no Éden da praça, voando no abismo, rumo ao inferno sem fim.

A prosa poética, a expressividade criativa e o prazer estético que experimentamos na leitura de Niketche nos obriga a abandonar juízos e estereótipos, principalmente por estarmos diante de uma literatura fora do cânone ocidental _ branco, europeu e masculino. Chiziane nos põe diante do espelho multicultural moçambicano e nos leva a refletir sobre o nosso lugar nas sociedades patriarcais em que estamos inseridas, o quanto estamos colaborando para o machismo estrutural que nelas persiste, como estamos criando nossas meninas e nossos meninos, que futuro queremos para elas? E a sociedade matriarcal? Seria uma sociedade possível? E nos convida a cantar e dançar a dança da sororidade, porque a cantar e a dançar, construiremos escolas com alicerces de pedra, onde aprenderemos a escrever e a ler as linhas do nosso destino.






* indenização" dote recebe dinheiro e a mulher passa a ser da família do noivo quase como trocas comerciais, aliança entre famílias, casam em troca de cabeças de gado, sedas, lençóis, dinheiro. A transmissão do nome é patriarcal.

** Rami e Julieta são do Sul , Luísa é da etnia xingondo, centro e norte do país, Saly é maconde, do nordeste e Mauá é macua, do norte, de tradição matriarcal

*** Niketche: Dança ritual de amor e erotismo, desempenhada pelas meninas durante cerimônias de iniciação; dança de amor.

obs : Os artistas plásticos que ilustraram esse post são moçambicanos

Ouça aqui Rosalia Mboa, citada por Rami no livro: https://open.spotify.com/artist/3obaRP7GQK2WikLJPQW8f6

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