Precisamos falar da Idade Média! (2)
- Mônica Cyríaco

- 25 de jan. de 2020
- 15 min de leitura
Atualizado: 13 de jul. de 2022
A ARTE DE TROVAR
O abandono do Latim, o comércio intenso entre portos e cidades e a aproximação cada vez maior com a língua falada nas diferentes regiões da Europa, como vimos na primeira parte desse post, favorecem o surgimento das línguas, hoje chamadas de neolatinas. O Trovadorismo é considerado o primeiro movimento literário em Língua Portuguesa e é a expressão literária do estilo gótico na arquitetura. As Cantigas trovadorescas são composições criadas em romanço galaico-português, uma variante dialetal do latim vulgar própria de uma região da Península Ibérica e que será base da Língua Portuguesa.
São poemas orais, compostos e cantados na língua falada, em que se pode observar a complexidade da sociedade ibérica, trilíngue e o ambiente social e cultural ali existente, configurando-se no patrimônio mais rico da Idade Média peninsular. Essa mistura cultural nas composições líricas pode ser observada, por exemplo, no uso do zéjel, um padrão árabe tradicional de construção de estrofes para serem declamadas, e que foi muito utilizado nas cantigas galaico-portuguesas. Esse padrão consiste num estribilho de dois versos, aos quais se seguem uma rima seguida de outros três versos ( mudança), e um quarto verso que retoma a rima anterior ( volta), que rima com os sons do estribilho. A distribuição dos versos ficaria assim : aa (estribilho), bbb (mudança), a (volta) e a repetição do estribilho aa-bbba, aa-ccca, aa-ddda. Esse padrão está em Rosa das Rosas, cantiga X, muito conhecida do Cancioneiro de Santa Maria, de Afonso X. Observe :
Rosa das Rosas / E Fror das Frores (a)
Dona das Donas/ Sennor das Sennores. (a)
Rosa de beldad'e de parecer (b)
E fror d'alegria e de prazer (b)
Dona en mui piadosa seer (b)
Sennor em toller coitas e doores (a)
Rosa das Rosas/E Fror das Frores (a)
Dona das Donas/ E Sennor das Sennores. (a)
Atal sennor dev'ome muit'amar (c) Que de todo mal o pode guardar (c) E pode-ll'os peccados perdoar (c) Que faz no mundo per maos sabores (a) E assim por diante.
Outra influência árabe que encontramos, com registros desde o séc. IX , é a moachacha, uma poesia estrófica, de versos curtos, em que cada verso não terminava na mesma rima, mas havia um padrão de rimas em cada estrofe sendo repetido ao longo do poema. Os dois versos finais eram escritos em moçárabe ou em hebraico, chamados de carjas. Esses poemas foram escritos por árabes e assimilados por judeus sefarditas ( os que habitavam a Sefarad, ou Hispânia). O acompanhamento musical era feito por alaúde, cítara, pandeiro e coro, o eu lírico era feminino e os temas da poesia variavam entre descrições da natureza, do amor, louvor a Deus, lembrando muito as cantigas de amigo.
Mais uma prova de que cristãos, árabes e judeus não viviam num clima bélico de inimizade como a história oficial insistiu em contar. Nas iluminuras ao lado, vemos duas ilustrações das Cantigas de Santa Maria, curiosamente mostrando um mouro e um cristão tocando e bebendo juntos. Há hipóteses hoje de que já existisse uma lírica românica na 1ª metade do século XI relacionada à cultura hebraica e moçárabe, portanto, dois séculos antes dos galaico-portugueses. A outra influência que o Trovadorismo recebeu foi a provençal.
Ainda no século XI, no sul da França, com o objetivo de trazer mais fiéis para a igreja e diminuir a simpatia por "hereges" cátaros, padres passam a usar a língua provençal nas missas e nas histórias de santos. No século XII acontece o florescimento da rica cultura provençal, com seus artistas mambembes, músicos e trovadores, que falam do amor como um culto à mulher amada, inventando, assim, o amor cortês e a vassalagem amorosa, características literárias que refletem as relações sociais feudais daquela região. O cantar provençal, muito provavelmente pela proximidade geográfica, chega à Península e ali encontra uma poesia primitiva, autóctone, ousada, mesclada à cultura hebraica e moçárabe (cristãos ibéricos que viviam sob o governo andaluz). Dessa mescla, surge o Trovadorismo, movimento que tem como figura central o poeta trovador e suas produções artísticas , as Cantigas, reunidas posteriormente em Cancioneiros, manuscritos medievais que tinham como objetivo compilar as Cantigas e dotá-las de notação musical. Os principais tipos são as Cantigas de Amor, as Cantigas de Amigo, as Cantigas de escárnio e maldizer e um tipo específico de cantiga de cunho didático-religioso, as Cantigas de Santa Maria.
CANTIGAS DE AMOR
Foi a que mais influência teve da lírica provençal. O Cancioneiro da Ajuda é o manuscrito mais antigo e compila quase exclusivamente as Cantigas de Amor. Nelas, encontramos o eu lírico masculino que canta para a mulher distante e idealizada, frequentemente chamada de Senhor ( a desinência de gênero para essa palavra ainda não havia aparecido) ou Dona, o que demonstra ser essa mulher de uma classe social superior e idealizada. Nesse modelo, o trovador utiliza as convenções do amor cortês, que são : a vassalagem amorosa, que ocorre quando o trovador jura submissão e fidelidade à Dona; a mesura _ vocabulário polido, contido, embora cheio de sensualidade e sentimento, para se referir à mulher sem jamais mencionar seu nome e a coita, ou sofrimento amoroso, já que o eu lírico sofre por amar e não ser correspondido.
É importante destacar que , embora fosse uma cantiga palaciana , com registro aristocrático e de certo modo didático, com o fim de educar homens e mulheres na "arte de amar" dentro do modelo provençal, a cantiga ibérica difere-se da provençal por ser mais curta e frequentemente incluir refrão. A cantiga abaixo é de Bernal de Bonaval e traz todas essas características, observe:
A dona que eu am'e tenho por senhor
amostrade-mi-a, Deus, se vos en prazer for,
senom dade-mi a morte.
A que tenh'eu por lume destes olhos meus
e por que choram sempr', amostrade-mi-a, Deus,
senom dade-mi a morte.
Essa que vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, ai, Deus!, fazede-mi-a veer,
senom dade-mi a morte.
Ai Deus! que mi a fezestes mais ca mim amar,
mostrade-mi-a, u possa com ela falar,
senom dade-mi a morte.
Você pode ouvir uma versão musical dessa cantiga aqui : https://cantigas.fcsh.unl.pt/versoesmusicais.asp?cdcant=1083&vm1=110&vm2=409
Dirigindo-se a Deus, o trovador pede-lhe que lhe permita ver a sua senhora ou então que lhe dê a morte. Na última estrofe, o pedido inclui a possibilidade de esse encontro ser num lugar onde lhe possa falar.
Um trovador muito famoso que adorava escrever cantigas de amor foi D. Diniz, o rei português , neto de Afonso X, rei de Castela.
CANTIGA DE AMIGO
É a cantiga galaico-portuguesa por excelência, pois retoma a tradição da poesia de voz feminina já presentes na cultura árabe e introduz o paralelismo sintático, técnica estrófica estruturante da poesia popular que perdura até nossos dias nas composições de língua portuguesa. O paralelismo é decisivo na ligação da letra com a música e a dança e, juntamente com o refrão, reforça a musicalidade e a memorização. São, portanto, composições mais antigas e populares, mas que foram adaptadas pelos trovadores ao universo cortês e palaciano.

em 1914, um manuscrito do séc.XIII foi encontrado por acaso pelo livreiro madrilenho Pedro Vindel, servindo de forro a um livro de Cícero em sua biblioteca. Nesse manuscrito havia 7 cantigas de amigo do trovador galego Martim Codax, com as devidas notações musicais, um verdadeiro tesouro encontrado por acaso!
Nos temas , a Cantiga de Amigo é mais eclética e menos convencional que as cantigas de amor. A voz feminina que canta, frequentemente está num espaço aberto e natural, com muitas alusões a fontes, mar, rios, campos, flores e alarga o universo feminino ao mostrar interlocução com outras mulheres, como a mãe, irmãs, amigas. Essa voz canta frequentemente sua iniciação amorosa, é uma voz de mulher jovem, "bem-talhada" e "velida", tem seu corpo erotizado, completamente contrário ao corpo da "Senhor" distante e idealizada da cantiga de amor e, enamorada, sente alegria, tristeza ou saudade do amigo. Mas se não houver interlocutoras, a confidente dialoga com a Natureza personificada, o que constitui a qualidade mais impressionante do lirismo galego-português, perguntando pelo amigo às ondas ou às flores, que a consolam.
É importante lembrar que, embora haja registros de mulheres trovadoras na região da Provença, a quase totalidade das cantigas de amigo, apesar de um eu lírico feminino, foram atribuídas a homens trovadores na transcrição posterior nos cancioneiros. Está colocado o problema. Já no séc. XVIII , a filóloga e professora da Universidade de Coimbra Carolina Michaelis levantava o problema de autoria de muitas cantigas de eu lírico feminino na Península, por possuírem uma voz e uma gramática feminina, por serem originalmente cantigas de tradição oral, por terem sido versadas e musicadas pelas próprias mulheres no mundo rural, como cantigas de dança ou trabalho. São possibilidades. A polêmica está em curso e as pesquisas também estão.
Observe uma cantiga de amigo de Martim Codax, retirada do Pergaminho Vindel :
CANTIGAS SATÍRICAS
No livro A arte de trovar, que faz parte do Cancioneiro da Ajuda, vemos que havia dois tipos de cantigas satíricas : a de escárnio e a de maldizer. O objetivo das duas era o de " dizer mal" de alguém ou de uma situação, a de maldizer trazia uma crítica mais direta e ostensiva e a de escárnio deveria ser mais sutil e ambígua. É claro que é uma distinção mais teórica que prática, nem sempre essa regra era seguida e muitas cantigas admitem dupla classificação ou deixam em dúvida seu objetivo. As cantigas satíricas geralmente eram de mestria ( sem refrão) e utilizavam uma linguagem muito mais ligada à oralidade, daí ser o léxico muitas vezes de difícil compreensão para os estudiosos hoje. Essa coloquialidade também permitia o uso de termos e expressões chulas para criticar tipos sociais, com preferências pela prostituta, o padre namorador, o feio, o corno, o rico sovina. A importância desses textos é revelar, pelo riso e pela sátira, um vasto leque de acontecimentos, comportamentos cotidianos , linguísticos, sexuais, morais da sociedade da época. Vamos observar mais de perto uma cantiga satírica :
Estavam hoje duas soldadeiras
dizendo bem, a gram pressa, de si,
e viu a ua delas as olheiras
de sa companheira, e diss’ assi:
– Que enrugadas olheiras teendes!
E diss’ a outra: – Vós com’ ar veedes
desses ca[belos …………………………..]?
E …………………………………………………….
…………………………………………………….
…………………………………………………….
…………… en’ esse rostro. E des i
diss’ el’ outra vez: – Já vós doit’ avedes;
mais tomad’ aquest’ espelh’ e veeredes
tôdalas vossas sobrancelhas veiras.
E ambas elas eram companheiras,
e diss’ a ua em jogo outrossi:
– Pero nós ambas somos muit’ arteiras,
milhor conhosqu’ eu vós ca vós [a] min.
E diss’ [a] outra: – Vós que conhecedes
a mim tam bem, por que non entendedes
como som covas essas caaveiras?
E depois tomarom senhas masseiras
e banharom-se e loavam-s’ a si;
e quis Deus que, nas palavras primeiras
que ouverom, que chegass’ eu ali;
e diss’ a ua: – Mole ventr’ havedes;
e diss’ a outr’: – E vós mal o ‘scondedes
as tetas que semelham cevadeiras.
(João Baveca)
OBS: Os versos da primeira estrofe foram perdidos, mas não chegam a afetar a integridade de sentido.
Nessa cantiga de escárnio, vemos o trovador, usando de ironia, incluir-se na cena como um observador da conversa entre duas soldadeiras _ mulheres que possuíam a arte do canto e da dança e acompanhavam jograis e trovadores em suas apresentações. Chamavam-se soldadeiras porque dançavam e cantavam em troca de um soldo e foram presença ativa em todas as cortes da Península, embora pouquíssimo se saiba a respeito delas fora do discurso poético . Um silêncio emblemático, porque estudamos as cantigas, mas não colocamos em destaque o importantíssimo papel da arte dessas mulheres nas apresentações. Um papel tão importante que, das 16 iluminuras do Cancioneiro da Ajuda, 12 delas são representações de soldadeiras. Provavelmente eram mulheres livres, que desafiavam o modelo de mulher que já se tentava moldar. Não à toa, das mais de 400 cantigas satíricas que chegaram até nós, 10% delas têm como tema as soldadeiras. São textos de conteúdo erótico/ sexual, em que se evidencia em tom de sátira seus desejos desmedidos por sexo, suas doenças venéreas, o alto preço que cobravam nas relações sexuais, suas relações com clérigos, envolvimentos com magia, sua arte de seduzir, relações lésbicas, sobre beleza física e idade. Ou seja, a partir de um olhar convencional, essas mulheres são "cantadas" como estereótipos que não devem ser seguidos.
Voltemos à cantiga. Nela, como já foi dito, o eu-lírico simula, com ironia, uma conversa entre as soldadeiras que estão se banhando num rio:
Estavam hoje duas soldadeiras
dizendo bem, a gram pressa, de si
A partir da observação do tenso diálogo entre as duas, de uma relação de inveja entre as mulheres que se apontam os defeitos, ficamos sabendo que todos estão relacionados à beleza física, ao fim dos atrativos físicos da juventude . Adjetivam-se como encovadas, enrugadas, com olheiras. Mas a ironia do trovador continua, nos versos :
– Pero nós ambas somos muit’ arteiras,
milhor conhosqu’ eu vós ca vós [a] min.
Afirmação que é logo refutada :
– Vós que conhecedes
a mim tam bem, por que non entendedes
como som covas essas caaveiras?
Quando pensamos que as críticas acabaram , com as duas indo se banhar no rio, louvando-se a si, damos com o poeta na cena,
e quis Deus que, nas palavras primeiras
que ouverom, que chegass’ eu ali;
e diss’ a ua: – Mole ventr’ havedes;
e diss’ a outr’: – E vós mal o ‘scondedes
as tetas que semelham cevadeiras.
As palavras do trovador estão no texto o tempo todo, são dele as críticas , mas nessa última estrofe a pergunta que fica é : quem fala? São elas que retomam o diálogo ou é o trovador que resolve acabar com a disputa dando a palavra final? Ambiguidades da cantiga de escárnio...
Por fim, deixo aqui um link onde se poderão encontrar todas as cantigas compiladas dos Cancioneiros medievais, além de estudos comparativos e notações musicais :
CANTIGAS DE SANTA MARIA
As Cantigas de Santa Maria, ou cantigas alfonsinas formam a coleção mais importante do séc.XIII. São 427 cantigas manuscritas compiladas e iluminadas na corte de Afonso X, o sábio, no scriptorium régio, na lendária escola de tradutores de Toledo, formada com os mais destacados sábios árabes, judeus e cristãos. Inúmeros documentos são ali traduzidos, como já vimos no post anterior.

Sob Afonso X ( 1252-1284) , as políticas de centralização na Espanha tomaram força com a reconquista de territórios como Múrcia, Jaén, Córdoba e Sevilha e a sujeição do Reino de Granada, por meio de uma vassalagem que perdurou até a reconquista dessa cidade pelos reis católicos. Essa centralização na figura do rei nem sempre foi tranquila, já que muitos nobres se recusavam a ver diminuídos seus privilégios e poderes. Afonso, então, reorganiza , as cortes, os códigos judiciais e o poder legislativo, no qual reforça o poder sucessório por meio da linhagem e hereditariedade. Todos esses documentos são redigidos na língua castelhana, a língua de governo, portanto, é a prática letrada que consolida as bases do
poder.
As Cantigas de Santa Maria surgem nesse contexto de construção das bases do chamado Estado Moderno e Afonso X, o rei trovador, valendo-se de uma intimidade quase que filial com Nossa Senhora, criará "catedrais de palavras", equivalentes, em arquitetura, às catedrais góticas - grandes símbolos do rei e das cidades. Catedrais escritas em galaico-português, que o rei dominava desde a infância passada na Galícia.
Nessas cantigas, de mentalidade profana e religiosa, o culto mariano é conjugado com a retórica amorosa do amor cortês. A forma é árabe, com preferência pelo zéjel, mas o conteúdo é cristão. As narrativas dos milagres da virgem são colhidas na tradição oral, há uma variedade de temas ( e isso é muito inovador) , um claro objetivo didático, uma escrita vernacular galaico-portuguesa, tudo isso " temperado" pela voz humana.
Escolhi cinco cantigas, das 427, para um breve estudo. Você pode acessar todas as cantigas aqui: http://www.cantigasdesantamaria.com/index1.html . Basta colocar o número da cantiga no canto superior esquerdo da página e poderá ler a cantiga desejada. Eu escolhi as de número 4, 16 e 84, 205 e 401.
Cantiga 4 - A madre do que livrou dos leões Daniel.
Tema : Judeus/ Conversão/ Milagre/
Assunto : Retoma uma passagem bíblica do Antigo Testamento, em que Daniel é livrado da morte por Deus.
Santa Maria, mãe "do que livrou Daniel" (Deus) livra uma criança judia da morte pelo fogo.
O filho único de um vidreiro judeu gostava muito de ler e de estudar , frequentava a escola entre outras crianças cristãs e estava sempre junto com os colegas. Num dia de Páscoa, ele entrou numa igreja onde viu um abade no altar, dando hóstias aos amiguinhos num lindo cálice. Naquele momento ele teve uma visão de Nossa Senhora dando-lhe hóstias para comer e surgindo reluzente no altar. Ele comeu as hóstias, foi pra casa feliz e contou tudo para seu pai. O pai, fora de si, jogou o menino na fornalha, chamando-o de traidor. Quando a mãe viu aquela cena , saiu pela rua gritando desesperada, os vizinhos a socorreram e foram correndo abrir o forno, de onde o menino saiu ileso, dizendo que havia se coberto com o manto da Virgem que ele havia visto na igreja. A juderia passa a acreditar na santa, o menino foi batizado e o pai foi condenado à morte. Há várias questões subjacentes a essa cantiga: ela retoma antigos mitos medievais de judeus que sacrificavam crianças por ocasião da Quaresma; traz o tema da conversão, feita a partir de uma criança, um inocente e condena ao fogo eterno o judeu pai que recusa a fé cristã.
Os judeus são muito mencionados nas cantigas , frequentemente assumindo posições contrárias ao cristianismo, definidos como avaros, traidores, blasfemos, falsos, diabólicos, questionadores dos dogmas cristãos. Como a religião judaica é a mais próxima da cristã, é necessário combatê-la e reforçar as histórias de conversão religiosa. Outras cantigas interessantes de judeus nesse contexto são as de número 91, 109, 25.
Cantigas 16 e 84
Tema: Amor cortês / Amor espiritual / Milagre/ Modelo de mulher
Assunto: As duas mostram o amor cortês sendo substituído pelo amor por Nossa Senhora.
A cantiga 16, Quen dona fremosa e bõa quisér amar, fala de um cavaleiro francês ( referência ao amor cortês provençal) apaixonado e desprezado por uma dona. Louco de amor, procura um padre em confissão , que o aconselha a rezar por um ano 200 vezes a Ave Maria todos os dias de joelhos em seu altar pedindo pela mulher. Ao cumprir sua promessa, o cavaleiro vai à gruta da santa, onde ela se revela. O homem fica impressionado, diz que a santa é a coisa mais maravilhosa que seus olhos nunca viram e afirma que quer ser pra sempre dela e deixar a outra dama. Então a Virgem diz a ele que para isso terá que fazer tudo de novo por mais um ano. Ele o fez e no fim daquele ano, ela o leva.
É quase o mesmo tema da cantiga 84, O que en Santa María crevér ben de coraçôn. Nela , um homem casado e apaixonado por sua mulher, descrita como uma menina bela e muito ciumenta, sai todas as noites de casa, furtivamente, para rezar para a Virgem espiritual, a quem ele amava mais que qualquer coisa. Um dia a mulher lhe perguntou aonde ele ia sempre " como um ladrão" , ele diz que não admite suspeitas, mas a mulher fica muito desconfiada e uma noite após o jantar, pergunta-lhe se ele amava outra mais que a ela e ele responde que "outra dona mui fremosa /amo muito e amarei/ mais d'outra cousa do mundo/ e por seu sempre andarei" A esposa , enfurecida, enfia uma faca em seu peito e cai morta. O homem a põe na cama e corre pra igreja , pede pela vida da esposa , dizendo que o mal que ele fizera foi de amar mais a Virgem que a esposa. A santa aparece pra ele, realiza o milagre intercedendo junto a seu filho pela ressurreição da mulher e o casal comemora muito, chama os vizinhos e todos viram fiéis fervorosos da Virgem.
As duas cantigas refletem o crescimento do culto mariano e mostram bem a interação entre as cantigas de amor provençal e as cantigas de SM, cujos elementos convencionais como o amor cortês, a vassalagem amorosa, a coita, a fidelidade e a figura da mulher idealizada são aproveitados para que se construa um modelo de mulher e de amor que fuja da lírica profana e se coloque no campo da espiritualidade. A santa - Virgem Maria, nas duas cantigas, é o espelho da mulher desejada. Nelas, o homem ama duas mulheres, uma espiritual e a outra, carnal, no entanto, só um tipo amor é valorizado. Assim, na primeira cantiga o cavaleiro amante deixa o amor físico, que só traz loucura e insatisfação, pelo espiritual, o único que pode ser eterno, no paraíso. Na segunda, a fidelidade à Virgem opera o milagre de ressurreição da mulher ciumenta que, abandonando suas atitudes mundanas, passa juntamente com o marido , a servir à Virgem.
Cantiga 205 - Oraçôn con pïadade oe a Virgen de grado
Tema: Mouros/ Disputa territorial/ Conversão/ Milagres
Assunto: Uma mulher com seu filho nos braços escapa de um assédio cristão a um castelo mouro.
Essa cantiga conta a história de uma invasão cristã a um castelo mouro. Assim que a invasão é consolidada, os mouros põem fogo em tudo, muitas pessoas correm, muitos morrem. Nessa cena , aparece uma mulher moura com seu filho nos braços, em desespero, numa alta torre que seria o próximo alvo dos guerreiros. Quando avistam a mulher e a criança no alto da torre, vêm-lhes à lembrança a Santa Maria abraçando seu filho e imediatamente põem-se a rezar à Virgem que os salvasse da morte e o milagre se dá: a torre vem ao chão, mas a mãe e o filho estão ilesos. A cantiga termina dizendo " e a moura foi cristã e seu filho batizado".

As cantigas de SM citam os mouros com frequência e, refletindo o contexto da época, eles estão envolvidos em disputas territoriais, saques, são descritos como causadores de medo, inimigos, opositores e frequentemente têm suas características físicas destacadas pejorativamente, como beiçudos, barbudos, negros. Os exemplos de conversão ao Cristianismo aparecem com mulheres, como nessa cantiga. Outras cantigas que citam mouros são as de número 28, 46, 169, 181.
Cantiga 401 - Macar poucos cantares acabei e con son
Tema : Consolidação do poder do rei/ Direito divino
Assunto: O rei faz uma petição à Santa Maria
O rei Afonso faz uma petição à santa pedindo proteção, perdão pelos erros, afirma que quer ir ao paraíso, pede ajuda para destruir os mouros que ocupam a Espanha,diz que quer viver para servir , ser justo com seu povo , quer ser sábio e corajoso. Reafirma sua posição de rei por vontade divina e enumera as características que devem ser rejeitadas num homem nobre, como dar pouco e querer muito, ser vil, não ter vergonha, ser torpe, caluniar, ser desleal.
As Cantigas de SM são uma fonte importante de informações de como a sociedade ibérica se organizou no reinado de Afonso X. Embora as cantigas sejam atribuídas a ele, sabe-se que a maior parte delas foram escritas por diferentes trovadores em diferentes épocas, mas compiladas no reino, o que era muito comum na época. A convivência entre as diferentes culturas e grupos religiosos foi fundamental para o sucesso de seu reinado, embora fosse fundamental, na época, fortalecer o Cristianismo. Percebemos que a integração entre os diferentes grupos foi permitida, desde que submetidas a símbolos cristãos. É comum ver nas cantigas de SM disputas de espaços religiosos em que a igreja vence ( c27), ou disputas territoriais entre mouros e cristãos, ou ainda disputas comerciais entre judeus e cristãos em que a santa é chamada como fiadora (c25). A conversão é um tema frequente, mas nunca é forçada, ela se dá pela vontade, pelo convencimento, pelos milagres. A mulher aparece como alguém que deve se espelhar na santa, se for cristã, ou como digna de salvação e conversão, se for de outra religião, mas não aparece com instintos demoníacos, esses são exclusivos de alguns judeus.
Por fim, deixo aqui uma ferramenta importante para quem quer trabalhar com esses textos, um glossário da poesia medieval profana galego-portuguesa: http://glossa.gal/inicio
Sugestões de atividades:
Criar cantigas
Pesquisar permanências de características das cantigas na música popular
Criar iluminuras para músicas ou cantigas
Transformar cantigas de amor em satíricas e vice-versa, substituindo apenas uma estrofe do texto original



























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