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  • Foto do escritorMônica Cyríaco

Templos no tempo

Atualizado: 22 de dez. de 2022

A Catedral de Sevilha


A Catedral de Sevilha foi construída sobre a mesquita que, por sua vez, foi construída sobre uma igreja visigoda de 712 e demonstra bem as camadas da cultura sevilhana. É a maior catedral gótica da Europa, com 5 naves, 6 portas , onde se encontram obras de arte em pinturas, esculturas , ourivesaria, tudo financiado pelo ouro das Américas.

Da antiga mesquita sobrou pouco, aí está o arco da Puerta del Perdón, que hoje é a porta de saída da visitação. A torre sineira, na quarta imagem, foi acrescentada mais tarde, assim como os santos da fachada.


A surpresa dessa entrada é a grande porta de madeira revestida em bronze , bordada com inscrições que repetem versículos do Corão , como " O poder pertence a Alá " e " A eternidade é de Alá" . Reparem o lindo trabalho de lacerias e arabescos que desenham as palavras sagradas, lindo! A primeira imagem dá a noção da altura da porta encostada no canto, à direita. As outras duas são tentativas de fotografar o "infotografável".

Outra herança árabe remanescente é o Pátio de los Naranjos, um pátio lindo e fresco, repleto de um tipo de tangerina, os naranjos, entrada da antiga mesquita e que ainda preserva os lavatórios utilizados nos rituais de purificação do corpo antes da entrada do fiel no templo. É tão grande, que só do alto da torre consegui enquadrá-lo completamente , a outra mostra a entrada do pátio, com a catedral ao fundo e a torre à esquerda.

E a última herança árabe desse edifício é o minarete , transformado em torre sineira , conhecida hoje como La Giralda, o maior símbolo de Sevilha. O minarete era o lugar de onde o muezim chamava para as orações e possui 35 rampas para que ele pudesse subir a cavalo cinco vezes ao dia. Após a conquista cristã, o minarete ganhou o acréscimo de um campanário com 24 sinos e uma escultura de ferro que gira com o vento, o giraldilho, que representa o triunfo da fé. ( Eu achei interessante pensar no giraldilho como uma vigilância da fé, já que ele toma conta direitinho dos fiéis onde quer que eles estejam ).

Daí o nome da torre, La Giralda, de onde se pode ter as vistas mais espetaculares da cidade de Sevilha.


As flores que ornam a Giralda estão no detalhe abaixo. Sobre o trabalho do artista de ferro na torre, João Cabral escreveu :

Conhece a Giralda em Sevilha? De certo subiu lá em cima Reparou nas flores de ferro dos quatro jarros das esquinas? Pois aquilo é ferro forjado. Flores criadas numa outra língua. Nada têm das flores de fôrma moldadas pelas das campinas. Dou-lhe aqui humilde receita, ao senhor que dizem ser poeta: o ferro não deve fundir-se nem deve a voz ter diarreia. O ferrageiro de Carmona, João Cabral de Melo Neto

Dentro da catedral, a peça mais impactante é o retábulo de madeira policromada que demorou 100 anos para ser construído e narra toda a história cristã, do nascimento de Maria, sua gravidez, o nascimento de Cristo até sua ressurreição, uma verdadeira história contada em quadros esculpidos bastante impressionante.

Outra peça importante é o órgão de tubos com quatro teclados manuais, que tem apresentações em dias pré-determinados. Há ainda, como curiosidade, o túmulo de Colombo dentro da igreja. Todas as segundas-feiras, entre 16:30 e 18h, a entrada é franca. Se quiser fazer um tour virtual pela catedral de Sevilha , acesse https://www.lacatedraldesevilla.org/mapa-virtual-catedral-sevilla.html









CÓRDOBA


Fizemos um bate-volta Sevilha-Córdoba, para conhecer a mesquita-catedral. Lindíssima, uma verdadeira colcha de retalhos e de superposição de tempos e culturas, como tudo nessa região. Mas, como quase todas as vezes em que fazemos esse tipo de concessão ( ir e voltar no mesmo dia), o arrependimento depois é enorme. Paciência, é uma pena não poder viver viajando... Córdoba, a capital do Al-Andalus e Sefarad medieval não merecia isso! Eu indicaria pelo menos uma noite e dois dias para conhecer quase tudo o que a cidade tem pra oferecer.

Então, caro Lucílio, procura fazer aquilo que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã se te lançares ao presente. enquanto adiamos, a vida se vai. todas as coisas, Lucílio, nos são alheias; só o tempo é nosso. Sêneca,Cartas a Lucílio

Pra começar, a cidade tem mais de 5.000 anos. Foi a cidade romana, capital da Hsipânia Bética, onde nasceu e viveu Sêneca (I d.C.). Há indícios de que os judeus chegam a Córdoba ainda sob o Império Romano, no século I. Em 1950, após o início de uma reforma urbana no centro histórico, descobriram-se ruínas de um templo dedicado ao culto imperial e posteriores escavações localizaram o sistema de abastecimento de água e os esgotos construídos naquele tempo.


A queda do Império Romano ocorre quando os visigodos invadem e conseguem se manter no território por dois séculos, até perderem o território para os árabes. Com os árabes , Córdoba conhece uma era de esplendor, com muitos intelectuais intercambiando saberes, tanto das populações judaicas e cristãs, quanto dos saberes trazidos de outras culturas a que o mundo islâmico tinha acesso (Pérsia, Índia, China, Grécia), tradutores, liberdade de pensamento, estímulo à leitura e à ciência, entre outros. Averróis, médico e filósofo árabe, tradutor e divulgador de Aristóteles era cordobense. Maimônides, médico, filósofo e teólogo judeu, também. A retomada de Córdoba aos árabes pelos cristãos ocorre antes de Sevilha e se aproveita de disputas intestinas étnicas e tribais entre as taifas ( reinos) muçulmanos. Como houve rendição, os muçulmanos partiram dali para Sevilha, mas muito da cultura mesclada ali permaneceu, os moçárabes ficaram, alguns judeus também ficaram, porém, agora restritos à judería, como em Sevilha, sendo definitivamente expulsos de todo território espanhol em 1492. Todas essas etapas de ocupação de Córdoba, do paleolítico aos nossos dias, podem ser conhecidas no excelente Museu Arqueológico da cidade. Desse museu, trouxe essas duas imagens, mas há muitas outras peças interessantes pra visitar.


Relevo de um sarcófago romano, representando a colheita de azeitonas, o que comprova a importância do comércio de azeite para a economia cordobense. Importante destacar que os melhores azeites ainda são colhidos da mesma maneira até hoje. (entre o fim do séc. III início do séc. IV)

Essa é uma pia, ou bacia, muçulmana, de meados do séc. X. O que me chamou a atenção foi a decoração com figuras de animais, o que desmente um pouco aquela ideia de que a arte muçulmana é iconoclasta, ou seja, rejeita imagens. Olhando bem , há até um antropomorfismo nas carinhas dos animais, principalmente do leão, que está na quina da peça.


Outra visita bem interessante é à judería de Córdoba, que possui uma das três sinagogas anteriores ao séc. XV que sobraram na Espanha. A de Córdoba virou um hospital para tratamento de raiva, uma capela e uma escola infantil, só no fim do séc. XIX foram encontrados vestígios da antiga sinagoga escondidos por trás de paredes do hospital. Em 1930 a sinagoga foi restaurada, deixando que hoje se possa conhecer muito do edifício original, decorado com caracteres mudejares. Hoje recebe judeus do mundo todo interessados em conhecer a história dos sefarditas. Nesse vídeo é possível ver essa preciosidade.


Outro sítio de interesse histórico é o Alcázar de los Reyes Cristianos, uma das principais residências dos reis católicos Fernando e Isabel , foi sede do tribunal da Inquisição por três séculos e serviu como guarnição das tropas de Napoleão no século XIX . Só no séc. XX, em 1950, foi restaurado como monumento nacional. Por ter sido construído sobre a Córdoba romana, sua coleção de mármores, bronzes e mosaicos extraídos do antigo circo romano é espetacular e os jardins são uma atração à parte, com seus canais de água canalizados do Guadalquivir e da serra e a realização de shows de luzes e águas. Deixo o vídeo projetado sobre as muralhas do Alcázar no evento Noches Mágicas , promovido pela cidade, durante as visitações noturnas.

No bate-volta de Sevilha a Córdoba, as únicas visitas que consegui fazer foi ao museu arqueológico e à Mesquita-Catedral, onde se podem encontrar vestígios de uma igreja visigoda dedicada a São Vicente, uma mesquita e posteriormente a catedral. Templos no tempo, que materializam a superposição de poderes políticos e, consequentemente, religiosos.

A Mesquita-Catedral de Córdoba

A Mesquita tem 13 séculos, mas não foi construída de uma vez. Sofreu várias ampliações e durante o califado de Al Hakan II , no século X, a reforma foi tão rica, que rivalizou com a mesquita de Damasco. Foram trazidos de Bizâncio artistas e arquitetos para acompanhar a obra. Nessa reforma, foram acrescidos o mihrab ( nicho de oração) e a maqsura ( recinto do califa).


Na ordem , o mihrab e sua cúpula e a maqsura. No detalhe da decoração,o que parece ser um rosto de mulher


Nossos olhos se perdem na beleza das 1.300 colunas de mármore e nos 365 arcos bicolores em ferradura, como se estivéssemos num jogo de espelhos olhando para o infinito.


É interessante que os arquitetos da mesquita não tenham modificado a distribuição da planta em cruz latina, própria da antiga basílica. A área da mesquita-catedral é de 23.400 m², onde caberiam 20.000 pessoas. O pátio muçulmano tinha múltiplas finalidades, social, cultural e política, além da religiosa, onde se realizavam tarefas de ensino, justiça e questões da administração pública.


Em 1236, Fernando III reconquista Córdoba e realiza um ritual de purificação do templo, com parte da mesquita destruída. As obras da capela-mor e do coro mantiveram as estruturas da mesquita com decoração mudéjar e ocuparam o mesmo lugar onde antes ficava a clarabóia de Al Hakan II com o objetivo de retomar rapidamente o lugar de culto para os cristãos, mergulhados no bosque de pilastras sem um altar.

Detalhes da Capilla de Villaviciosa, sua cúpula e o corredor oposto ao altar, no qual se pode ver os arcos da nave gótica com uma rosácea no alto. Foi uma adaptação de um templo em outro.


Mais tarde, em 1523, a nova reforma integra arquitetonicamente os templos muçulmano e cristão de modo magistral , pois encaixa , no meio do bosque de colunas árabe, o altar- mor, cria uma abóboda sobre o coro, semelhante à da Capela Sistina, e um espaço para o retábulo maior. Para completar a reforma, abre pequenas capelas nas laterais, construídas nos estilos renascentista e barroco e as decora com quadros de cenas bíblicas e o batistério. Esse coro é uma obra da arte barroca, as fotografias não dão conta! Impressionante! Foi feito sem usar pregos, apenas encaixes.

Do lado de fora, no pátio, é construído um claustro e as palmeiras mouras são substituídas por laranjeiras. O minarete é recoberto e torna-se a Torre do Alminar, torre sineira de onde se avista a cidade em 360º. Reciclagem total!

Hoje, depois de tudo o que se sabe sobre a história da Andaluzia, é quase um milagre que muito da antiga mesquita tenha sido preservado e que possamos ver a beleza dos dois templos colocados em diálogo exatamente no ponto em que se tocam as religiões no temp(l)o.


LINKS INTERESSANTES:

BIBLIOGRAFIA

Sêneca. Aprendendo a viver, cartas a Lucílio.L&M pocket, 2008

CABRAL, João & Inez. A literatura como turismo. Alfaguara, 2016

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